As causas e conseqüências do Plano Collor, que completou 20 anos em março passado, foram o tema de um seminário ministrado ontem por Carlos Eduardo Carvalho, professor da PUC de São Paulo, na Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs. Autor de uma tese de doutorado sobre o assunto, Carvalho lembrou que o bloqueio do dinheiro da caderneta de poupança, um dos maiores traumas financeiros da história recente do Brasil, não foi uma surpresa no meio econômico, pois a possibilidade vinha sendo discutida abertamente na época como uma medida "razoável" para reduzir a hiperinflação. O professor destaca que, apesar das boas intenções, o choque pretendido pelo governo era inexequível dadas as condições econômicas da época, e estava condenado ao fracasso desde o nascedouro.
Jornal do Comércio - Quando a ideia de bloquear ativos financeiros, marca do Plano Collor, foi gestada?
Carlos Eduardo Carvalho - Essa possibilidade estava em discussão no Brasil desde o fracasso do Plano Cruzado. Mas em 1984 já se comentava sobre a ideia. Essa medida tinha origem no problema de como reduzir a inflação alta. O Cruzado havia mostrado que não era tão simples acomodar a economia depois de um congelamento. Discutia-se muito que a única solução possível era fazer um bloqueio do dinheiro.
JC - Por que essa era a solução apontada?
Carvalho - O objetivo era impedir que houvesse explosão de demanda na ocasião do congelamento. Não é que o presidente Fernando Collor achasse que havia dinheiro demais na praça, o que se achava era que uma vez feita a redução da inflação haveria explosão de consumo, por que os bancos aumentariam o crédito e as pessoas acreditariam que poderiam se endividar. Com dinheiro na mão, o povo vai às compras, e com a demanda em alta, os preços voltam a subir. A meta do plano era impedir que isso acontecesse, para que a economia se adaptasse à inflação baixa progressivamente.
JC - Quem elaborou a proposta?
Carvalho - A parte teórica foi obra do economista Antonio Kandir, e a operacional do Ibrahim Eris, que tinha grande conhecimento de mercado. Embora a Zélia Cardoso de Mello não tenha redigido o plano, ela também deve ser considerada autora, pois foi ela quem coordenou o grupo. No entanto, pelo que pude apurar em minha tese, as primeiras ideias surgiram ainda durante a campanha eleitoral, em um documento discutido na assessoria do candidato do PMDB à presidência, na época, Ulysses Guimarães, e depois na assessoria do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, entre o primeiro turno e o segundo. A equipe do Collor só começou a discutir isso 15 dias depois do segundo turno das eleições, quando já estava eleito.
JC - Pode-se classificar o bloqueio realizado pelo governo de confisco?
Carvalho - Não gosto de usar essa palavra por que houve a devolução do dinheiro. O que houve de confisco foi realizado, na verdade, antes do bloqueio. Antes da posse de Collor, que ocorreu numa quinta-feira, decretou-se um feriado bancário que fez com que os bancos ficassem fechados por quatro dias úteis. Só foram reabertos na segunda-feira seguinte à posse, no dia 19 de março. Nesses quatro dias, com inflação quase a 80% ao mês, o juro era de mais ou menos 3% ao dia útil. Como não foram pagos quatro dias às operações financeiras, nesse processo desapareceram perto de 12% dos rendimentos que essas aplicações teriam. Além do mais, como o juro da segunda metade de março foi mais baixo, mais ou menos 25% da correção das aplicações não foi paga.
JC - Por que o plano, em sua opinião, era destinado ao fracasso?
Carvalho - Muita gente diz que o plano fracassou por causa das "torneirinhas", as liberações de dinheiro bloqueado que foram permitidas a alguns grupos, como aposentados, pessoas com problemas de saúde, caminhoneiros, entre outros. Mas ele falhou por que era inaplicável, era impossível fazer aquela retenção de dinheiro da forma como foi feita. O que de fato ocorreu é que no dia que reabriu o mercado financeiro, em 19 de março, ninguém sabia como aquilo ia funcionar. Tudo tinha sido construído em segredo, o Ibrahim Eris entendia de mercado, mas não tinha como pensar em tudo.
JC - Quais os principais problemas que o plano apresentou?
Carvalho - Havia regras muito confusas, e faltavam regras para várias coisas. Então o sistema bancário, depois de um dia e meio funcionando, simplesmente parou. Os bancos não sabiam a posição de caixa que tinham no Banco Central, que não sabia o que estava acontecendo com os bancos. Os bancos também não tinham dinheiro para resgatar as aplicações dos clientes, houve ameaça de tumulto em agências. Foi então que o BC começou a dar crédito às instituições financeiras. Em questão de 10 dias, a liquidez da economia tinha se recomposto, foi muito curto o choque de liquidez. Quando digo que o plano era inaplicável é por que aquelas medidas não poderiam ser implementadas, a menos que os bancos fossem fechados, o que levaria a uma economia de barbárie. Além disso, as condições internacionais não eram favoráveis. Toda a América Latina, incluindo o Brasil, estava sem financiamento externo, e a economia não tinha "colchão" de liquidez.
JC - Hoje, passados 20 anos, o senhor vê algum aspecto positivo no Plano Collor?
Carvalho - Ele conseguiu levar a inflação de volta aos 20% ao mês - estava em 80% em março. Mas não posso dizer se um programa mais moderado, como outro Plano Cruzado, não teria o mesmo efeito com menos estragos. Outro ponto positivo foi reduzir um pouco a dívida pública, mas não era tão grande na época como hoje. O Plano Collor fez com que essa dívida caísse de 22% do PIB para 18%, mas atualmente ela está em 50%. Talvez a medida mais importante com repercussões ainda hoje seja o fim da aplicação ao portador, que reduziu muito a evasão fiscal. Foi avanço enorme.
JC - De que forma a experiência do Plano Collor influenciou o Plano Real?
Carvalho - Ambos foram tentativas de estabilização que tinham o mesmo diagnóstico. Mas a diferença radical é que, em 1990, o Brasil estava em moratória externa, não tinha reservas, estava estrangulado do ponto de vista cambial. Já em 1994 o quadro era muito favorável, havia dinheiro sobrando por causa da mudança do quadro internacional.