"Shhh!" De tanto em tanto, a onomatopeia ecoa pelas salas cheias, instando os visitantes a calarem sua comoção diante das pinturas. Mas não estamos numa das muitas igrejas romanas pródigas em arte, as quais os seguranças nos lembram o tempo todo serem lugares de respeito. Estamos no secular Palazzo Barberini, em Roma. O objeto da atenção, como explica Francesca Angiolillo para a Folhapress, tem status sagrado - uma reunião de 24 quadros de Michelangelo Merisi, o Caravaggio.
Com 400 mil visitantes e ingressos esgotados em maio, a exposição Caravaggio 2025, que terminaria neste domingo, ganhou duas semanas extras para acomodar as marés de interessados em ver as obras do mestre do chiaroscuro.
A agitação é justificada. A mostra não só reúne mais de um terço da obra conhecida do artista como coloca no mesmo espaço exemplares que estão dispersos pelo mundo ou, em alguns casos, vedados aos olhos do público. A seleção cobre a breve trajetória do artista, desde o Autorretrato em Vestes de Baco, primeira tela de sua carreira solo, de 1595, até seu último quadro, Martírio de Santa Úrsula, pintado pouco antes de ele morrer, aos 38, em 1610. A última exposição desse porte dedicada a ele foi há 15 anos, também em Roma.
A antiga residência de Maffeo Barberini, que se tornaria o papa Urbano VIII, compõe com o Palazzo Corsini, do outro lado do Tibre, as Gallerie Nazionali d'Arte Antica. Na sua coleção, têm destaque obras dos séculos XVI e XVII, de artistas como Rafael, Tintoretto, Holbein e, claro, Caravaggio. Ainda assim, foi preciso um tour de force para montar a exposição."Caravaggio é a estrela de todos os museus, motivo pelo qual é difícil obter empréstimos", diz Thomas Clement Salomon, diretor das Gallerie Nazionali d'Arte Antica e um dos curadores da mostra. "Muitos quadros que tomamos emprestados eram a obra mais importante daquele museu."
Entre as obras selecionadas, há exemplares que foram da coleção Barberini e "voltam ao lar". É o caso de Santa Catarina de Alessandria, vendida há nove décadas e hoje no acervo do Thyssen-Bornemisza, de Madri, e novidades como o retrato de Maffeo Barberini, que nunca havia sido exposto.
Cinco pinturas vêm dos Estados Unidos, e quatro delas se encontram distantes do circuito turístico - só uma, Concerto, vem de Nova York. É, aliás, a única tela que não estará na prorrogação. Algumas obras, ainda, são de coleções privadas, caso do Ecce Homo, fora da Itália desde o século XVII. Antes de ser atribuído ao italiano, em 2021, o quadro por pouco não foi a leilão com lance inicial de R$ 9.500,00. Como referência, os valores de seguro de uma obra de Caravaggio, segundo Salomon, chegam a US$ 250 milhões.
No teto de um espaço particular, o Casino di Villa Boncompagni Ludovisi, está o único afresco de Caravaggio, Júpiter, Netuno e Plutão, acessível a visitantes com ingresso da mostra aos sábados e domingos, mediante reserva.
Também privada é a Conversão de Saulo. O quadro foi pintado sobre suporte nobre, uma prancha de cipreste, para a capela Cerasi. Mas a obra atualmente na igreja de Santa Maria del Popolo é uma segunda versão, bem diferente, que Caravaggio fez por motivos jamais esclarecidos. O principal fator de distinção é a carga dramática. Na tela exposta na igreja, Saulo está no chão, os braços para o alto, recebendo a luz que vem dos céus. Ao fundo, um homem aparentemente indiferente segura seu cavalo.
No quadro da mostra, não temos só a iluminação divina, mas o próprio Cristo, amparado por um anjo. A luz banha a cena em diagonal, cegando Saulo, que cobre o rosto com as mãos. Ao fundo, há um cavalo e um soldado armado, ambos espantados.
Essa é uma obra que deixa clara a marca à qual Thomas Clement Salomon atribui a atualidade do artista. Se ele consegue capturar a fragmentária atenção contemporânea, opina ele, isso tem a ver com o fato de que pintava o real. Em primeiro lugar, porque usava modelos verdadeiros - entre os quais ele próprio, autorretratado em várias telas, amigos e outras pessoas de seu círculo, que fazem as vezes de deuses mitológicos e personagens bíblicas. Porém, além de não pintar "figuras idealizadas", o que ele realiza também não são "retratos estáticos". Em suas telas, temos cenas colhidas "no ápice do drama".
A Conversão de Saulo é só um exemplo. Salomon, o curador, lista outros, como o Martírio de Santa Úrsula, no qual vemos a vítima recém-flechada em choque, olhando o peito ferido. Ou Judite e Holofernes, em que a viúva sedutora surge em plena decapitação do general assírio; tensa, a velha criada espera para colher a cabeça. "É fotográfico. Não há nada que não seja real nas pinturas de Caravaggio, ou quase."
A mostra percorre os 15 anos de atividade do artista, desde que chega a Roma, vindo de Milão. Depois de um período contratado para pintar flores e frutos no ateliê de Giuseppe Cesari, o respeitado Cavalier D'Arpino, resolve tentar a vida por conta própria. A decisão vem depois de se sentir abandonado pelo empregador ao ser hospitalizado. Assim nasce o marco zero de sua obra, o autorretrato como Baco, conhecido também como Pequeno Baco Doente, a pele esverdeada denotando o estado de saúde. O quadro está no início da exposição, próximo ao famoso Narciso, de autoria atualmente questionada.
Caravaggio logo cai nas graças do cardeal Del Monte, que se torna seu protetor. Para ele pinta, por exemplo, o Concerto. Em pouco tempo, começam a aparecer as comissões públicas, representadas na mostra pela Conversão de Saulo. Salomon afirma que não solicitaram nenhuma tela a igrejas, na expectativa de que o visitante vá ver essas obras in loco.
É a partir das obras sacras que a tensão das cenas se amplia. Na sala seguinte, além de Judite e Holofernes, vemos Marta e Madalena e Santa Catarina de Alessandria. Para essas obras, a modelo teria sido a cortesã Fillide Melandroni, uma figura do submundo que o artista frequentava. Caravaggio era chegado ao escândalo - o burburinho que enche as salas já o acompanhava em vida.
"Há um tal Michelangelo da Caravaggio que, em Roma, faz coisas notáveis", escreveu ainda em 1604 o escritor e pintor flamengo Karel van Mander. De acordo com Mander, Caravaggio não reconhecia mestres nem era afeito à labuta, trabalhando por duas semanas e vadiando por um mês ou dois, "indo de um jogo de bola ao outro, muito inclinado a duelar e a arrumar brigas".
Numa dessas ocasiões, sela seu destino. Em 1606, depois de uma partida de pallacorda, um antepassado do tênis, mata seu oponente, Ranuccio Tomassoni. Condenado à morte, foge para o sul. Em Nápoles, encontra proteção e trabalho. Suas obras, observa Salomon, se tornam então "muito mais meditativas". Em Davi com a Cabeça de Golias, ele se retrata não como o herói, mas como o gigante decapitado.
Em busca do perdão papal, procura se tornar cavaleiro da Ordem de Malta. Mas arruma um novo litígio e volta a fugir - o Retrato de um Cavaleiro de Malta é o testemunho da tentativa. Quando chega a notícia de que teria obtido a graça do papa Paulo V, o artista tenta voltar para Roma. Morre a caminho, levando consigo as obras com que pretendia presentear o pontífice.
Essa trajetória atribulada, admite Salomon, também contribui para o fascínio duradouro de Caravaggio. "Ele teve um grande sucesso em vida, foi muito copiado no século XVII, mas foi totalmente esquecido no neoclassicismo. Ele foi ignorado por dois séculos ou mais." Esse longo abandono alimenta a crença de que ainda haja tesouros escondidos e faz com que ele seja hoje muito estudado, acrescenta o curador. "Ele fez muitos retratos e só temos certeza sobre três ou quatro. Pode haver muitas pinturas no norte da Itália que não conseguimos atribuir a Caravaggio porque construímos uma determinada ideia dele", diz.
Uma boa amostra das muitas análises que a obra de Caravaggio suscita está no catálogo da mostra, que não se resume a registrar as pinturas expostas. O livro reúne estudos sobre temas tão distintos como a revalorização de sua obra pela crítica, sua religiosidade e sua técnica pictórica. Em alternativa à mostra, oferece uma bela imersão na obra do artista. A publicação está em pré-venda na Amazon por R$ 184,77, com expedição a partir de agosto.
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