O Sepultura fez uma escolha pela morte assistida. Ao invés de apostar em manter a banda na estrada indefinidamente, o grupo que revolucionou o heavy metal brasileiro e tornou-se um dos mais influentes do mundo decidiu despedir-se dos palcos enquanto ainda é relevante, logo após lançar um de seus melhores álbuns (o instigante Quadra) e ainda capaz de arrastar pequenas multidões por onde passa. Porto Alegre teve, pela segunda (e possivelmente última) vez nessa turnê, a chance de dizer adeus a essa instituição do rock pesado do jeito que deve ser: com empolgação, cabeças batendo e gritando o nome da banda em todos os intervalos entre as músicas. Celebrando a vida em meio à morte, exatamente como o nome da turnê (Celebrating Life Through Death, no original em inglês) sugere.
Cerca de 3 mil pessoas estiveram no Araújo Vianna neste sábado (31), e o público heterogêneo praticamente resume as gerações atingidas pela lenda do metal brasileiro. Jovens que nem eram nascidos nos anos 1990, auge comercial e artístico da banda, dividiam espaço com senhores que possivelmente guardam os discos originais da metade dos anos 1980 como itens valiosos em suas coleções. Já no começo do show, alguns esqueceram completamente das cadeiras, aglomerando-se no relativamente pequeno espaço diante do palco para curtir o show de pé, como de hábito em se tratando de heavy metal.
Vocalista que substitui o lendário Max Cavalera, Derrick Green mostrou grande presença de palco e falou em português com a plateia
EVANDRO OLIVEIRA/JC
Após um certo atraso, o quarteto veio ao palco com uma versão furiosa de Beneath the Remains, faixa que dá nome ao álbum que inaugurou a carreira internacional do grupo, no já distante 1989. Essa, aliás, foi uma diferença considerável em relação ao ano passado, quando boa parte do repertório foi feito de canções mais recentes: desta vez, o Sepultura não se constrangeu em olhar para seu passado, baseando boa parte do show em músicas anteriores à saída de Max Cavalera do grupo. Talvez os membros da formação clássica Andreas Kisser (guitarra) e Paulo Xisto (baixo) tenham percebido que um despedida de si mesmos não faria sentido sem uma conciliação maior com seu passado - ou quem sabe seja uma resposta velada aos próprios irmãos Max e Iggor Cavalera, que chegaram a regravar antigos álbuns do Sepultura e seguidamente afirmam que o verdadeiro espírito da banda lendária está com eles, e não com o Sepultura atual? Vai saber. Seja como for, foi uma escolha que certamente agradou aos presentes, que não pouparam energia durante as 'velharias' do setlist.
Temas clássicos como Inner Self, Desperate Cry e Attitude eram intercalados com canções mais recentes - algumas de fato excelentes, como a grandiosa Guardians of Earth e a densa e melancólica Agony of Defeat, duas das melhores músicas do ótimo Quadra. O tempo todo, a banda demonstrava evidente satisfação de estar em cima do palco; mais de uma vez, Andreas e o vocalista Derrick Green (que, apesar de ser norte-americano, fala um ótimo português) foram aos microfones elogiar a devoção ao metal dos porto-alegrenses. Canções ainda mais antigas, como Escape to the Void, lembraram a todos as raízes death/black da banda, e uma versão (infelizmente resumida) de Orgasmatron remeteu a plateia aos tempos em que o som pesado do Sepultura chegou a marcar presença nas rádios brasileiras.
Setlist do Sepultura privilegiou clássicos dos primeiros anos da banda, quando chegou a ser uma dos maiores do mundo
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De qualquer modo, a aposta em um repertório mais 'das antigas' trouxe à tona um problema que, na leitura deste que vos escreve, seguiu complicando a banda ao vivo durante décadas: a ausência de uma segunda guitarra. É compreensível que, com a saída de Max e a escolha de Derrick (que não é um guitarrista nato) em 1996, o conjunto tenha optado por ser manter um quarteto, sem complicar demais as coisas. Mas é fato que a combinação das bases cruas de Max com a execução mais versátil de Andreas era uma parte decisiva do apelo musical do Sepultura - e, se a ausência da bateria tribal e revolucionária de Iggor foi suprida com uma sequência de ótimos bateristas (o mais recente, Greyson Nekrutman, moeu o instrumento a noite inteira sem dar qualquer margem para reclamações), a guitarra base nunca deixou de ser um buraco incômodo nos shows do grupo. São quase 30 anos, é claro, e Paulo (hoje um baixista muito melhor e mais confiante do que era décadas atrás) consegue preencher parte do espaço vazio, mas temas como Dead Embryonic Cells e Territory sofrem sim, e até hoje, com esse pedaço que está faltando.
Novo baterista Greyson Nekrutman teve performance à altura, sendo festejado pelo público
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Não que isso tenha atrapalhado a noite de celebração, é claro. Encerrando cerca de duas horas de festa metálica, Refuse/Resist e Troops of Doom colocaram o Araújo Vianna em ebulição - que virou explosão incontida no breve, mas demolidor bis com Ratamahatta e Roots Bloody Roots. Não dá para cravar que essa seja, de fato, a última dança do Sepultura em solo gaúcho (é digno de nota, por exemplo, que a banda não tenha mencionado despedidas e palavras de adeus em momento algum do set), mas foi uma noite memorável para os fãs de metal da Capital, e tenho certeza que os músicos serão perdoados se transformarem a despedida em alguma forma de ressurreição. Afinal, celebrar a vida em meio à morte pode ser, justamente, o que velhas lendas precisam para reencontrar a juventude.
Banda do guitarrista Andreas Kisser, Sepultura apresentou-se pela segunda vez na Capital em sua turnê de despedida
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