"Sinto que a cena independente do início do milênio não foi tão celebrada quanto deveria, então, fiquei a fim de homenagear essa cena onde eu nasci e onde ainda me encontro", afirma a excêntrica Letrux, que volta a Porto Alegre com o show Letrux - 20 Anos Alternativa. A apresentação não é somente uma homenagem à cena embrionária para a cantora carioca, mas também marca as bodas de porcelana do relacionamento da artista com os palcos.
Para marcar o aniversário de 20 anos no nichado mundo alternativo, Letrux sobe ao palco despida de suas obras e vestida de composições de cantoras da música independente, como Céu, Ava Rocha, Karina Buhr e Anelis Assumpção. "Somos contemporâneas, e eu as considero referências também", declara.
A cantora se apresenta no sábado, no Opinião (rua José do Patrocínio, 834) e promete um "showzão", uma celebração digna do que foi o início do século para a cena underground. Isso porque a data carrega um significado mágico. Acompanhada de um esoterismo típico das feiticeiras, ela diz estar com saudades da capital gaúcha e vê um simbolismo antecipado no show. "Eu gosto muito do dia 31 de maio, é um dia meio especial para quem acredita em anjos", destaca. Ingressos podem ser adquiridos no site da Sympla, a partir de R$ 100,00.
Segundo a 'Mulher Girafa', a escolha do repertório se deu "pelo filtro da emoção". Cada música fez com que ela adentrasse numa saga pela própria vida. Uma das mais memoráveis é Bubuia, da cantora Céu. "Quantas vezes não ouvi essa música acampando, pegando 'busum' para a Bahia, contando estrela-cadente, e de repente eu tinha que cantar". Outra escolha nostálgica para a artista foi Tranquila, de Thalma de Freitas. "Sou uma pessoa preocupada. Mas ao passo que estou ali cantando 'não vou me preocupar', penso o quão forte é cantar uma música, o quão forte é entoar versos, e desejo que a força daquela frase seja real", afirma a capricorniana convicta.
Sobre as referências gaúchas da música alternativa, ela foi objetiva em citar o saudoso Júpiter Maça. "Um dos shows mais lindos que eu já vi na vida foi do Júpiter Maçã no Circo Voador, em 2014, acho. Lembro que em algum momento ele tocou violão sozinho e eu nunca ouvi um silêncio tão respeitoso no Circo Voador. Foi hipnotizante", relembra. Além de Apple, a carioca citou nomes como De Falla, Bidê ou Balde e Cachorro Grande, e que para ela estar na terra dessas referências da cena independente torna tudo mais significativo.
Para Letrux, o underground de hoje não é mais como o de antigamente. Segundo a artista, "o mindstream se complicou", e é mais fácil um artista iniciar do que se manter, porque essa manutenção do independente exige mais. Um exemplo é a carência de casas de show de médio porte. Ela diz que a estrutura que existe hoje não suporta a demanda da cena, que não cabe nem numa garagem e muito menos numa mega casa de eventos.
Há 20 anos não se imaginava a estrutura que um artista independente teria. A transição das gravadoras para o streaming e os desafios de se manter na estrada são pontos sensíveis. Segundo ela, o ano de 2016 — marcado pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff — representa uma ruptura na cena que existia até então. "A chegada sorrateira da extrema direita me assustou muito. Eu era um pouco inocente, ainda fantasiava sobre um futuro cultural mais fértil. E de repente entendi que muita gente detesta cultura, abomina arte. Um terror."
Foi nesse contexto que se intensificou a transformação de Letícia Novaes em Letrux — uma metamorfose artística que, segundo ela, é contínua e alimentada pelo teatro e pela criação de personas. "Outro dia li uma frase do Bob Dylan, que amo, onde ele dizia que a vida não é pra gente se achar, é pra gente se criar. E eu senti uma 'eureka' bem forte. Porque é isso. Talvez tenha gente que ainda precise se encontrar, não é meu caso. Eu preciso me criar mesmo."
Mesmo após estourar com os discos Em Noite de Climão (2017), Aos Prantos (2020) e Como Mulher Girafa (2023), ela reafirma seu pertencimento à cena alternativa. "Minha conta corrente ainda é alternativa", brinca. "Ganhei nome, sim, mas minha vida segue no independente. Não tão underground, mas fora do mainstream é onde me sinto em casa", explica.
A artista afirma que, fora do palco, sua vida é muito mais simples e tranquila. "Depois do show, tem gente que acha que vai fazer uma grande suruba cheia de drogas comigo, e tudo que eu quero é comer minha canja de galinha em paz no hotel", ironiza. Para os fãs gaúchos, fica o convite de uma das artistas mais irreverentes da música indie brasileira contemporânea: "Vamos tentar trazer de volta aquela fé e otimismo que havia no começo do milênio", finaliza.