A enchente de maio de 2024 não apenas causou danos materiais significativos aos espaços culturais de Porto Alegre, mas também feriu o coração da vida artística da cidade. Passados 12 meses da tragédia climática, os esforços de recuperação e reabertura gradual desses lugares demonstram a resiliência da comunidade cultural, que segue reerguendo seus templos e buscando se reaproximar da população.
Apesar do momento mais drástico ter ficado para trás, coletivos artísticos independentes, empreendedores e gestores públicos da Cultura têm lutado para contornar os prejuízos causados pela enchente, quando o setor ainda se reerguia após os impactos da pandemia de Covid-19.
Com a proposta de reerguer a Terreira da Tribo, sede do coletivo Ói Nóis Aqui Traveiz, o grupo que teve a maior parte do seu acervo destruído pela enchente, somando um prejuízo de mais de R$ 1 milhão, reabriu seu espaço cênico em novo endereço, no último dia 28. Antes situada na rua Santos Dumont, no bairro São Geraldo, a Terreira da Tribo agora funciona provisoriamente na av. Pátria, 98, localizada no mesmo bairro, na região do 4º Distrito. O grupo espera assinar no mês de maio a cedência de um espaço (dos Correios) para uma sede definitiva (na rua Ernesto da Fontoura). "Esta conquista é fruto de articulação coletiva que envolve Ministério da Cultura, Correios, Secretaria do Patrimônio da União, a deputada federal Maria do Rosário, Funarte e a comunidade. Diferentes grupos de teatro do País solicitaram que esta questão fosse resolvida", destaca a atuadora e produtora Tânia Farias, coordenadora da Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo.
A reconstrução da sede e do trabalho do Ói Nóis Aqui Traveiz foi um esforço conjunto, com a participação de voluntários e apoio financeiro de várias fontes. Após meses de luta, o coletivo retomou as atividades, com uma renovada determinação de levar o teatro ao público e fortalecer a comunidade artística. "Estamos em um momento em que já acreditamos que vamos sobreviver", afirma Tânia. "Depois de passarmos pelo período da ditadura (com atores presos e destruição de materiais), diversas recessões no País, desmonte da Cultura durante o último governo federal (2019 a 2022), pandemia... Pela primeira vez chegamos a ter dúvidas de que iríamos conseguir retornar", desabafa. "A enchente levou um pouco do nosso chão. Estamos tentando reconstruir o espaço, num local que também foi alagado, e ainda é provisório. No entanto, o 4º Distrito está muito abandonado. Desde a enchente, sofremos oito arrombamentos, não há policiamento na área. A insegurança é grande."
O governador Eduardo Leite e a titular da Sedac, Beatriz Araujo, marcaram presença na abertura da mostra 'Post Scriptum – Um Museu como Memória'
ASCOM SEDAC/DIVULGAÇÃO/JC
Também no 4º Distrito, região devastada pelas inundações de 2024, a casa de shows Gravador Pub precisou mudar de endereço, por conta da destruição de seu espaço anterior. Após oito anos funcionando na rua Conde de Porto Alegre, bairro São Geraldo, e depois de três meses fechado, o empreendimento funciona, desde agosto do ano passado, na rua Ernesto da Fontoura, 962 (no mesmo bairro). Os proprietários, Gabriel e Cristina Salomão, inauguraram o novo espaço, ainda com "muita coisa para fazer, por muito tempo". Mas a adesão do público aos espetáculos da programação é um alento, de que vai valer a pena o esforço pela reconstrução.
Como em sua primeira versão, o espaço do palco do Gravador Pub ocupa uma área expressiva e o camarim está melhor estruturado. O salão principal, por sua vez, está mais espaçoso. "Os instrumentos continuam nas paredes. O som está melhor. O palco agora tem 9 x 4 metros e nove monitores de retorno para os músicos. Antes podíamos receber 100 pessoas. Agora, até 205", destacam os proprietários. Para além do que já oferecia, o empreendimento também conta com um pequeno museu na recepção do pub, que exibe objetos salvos da enchente e relíquias que caracterizavam o velho espaço.
Localizado no bairro Menino Deus, o Teatro Nilton Filho (também devastado pelas inundações) foi reaberto após um período de evacuação, com as portas abertas para aulas e atividades a partir de junho do ano passado. A reabertura foi possível graças a um mutirão de alunos e amigos que ajudaram a limpar e recuperar o espaço. "No entanto, até agora estamos com coisas empilhadas, sem dinheiro para recuperar mobiliário", comenta o ator e diretor Nilton Filho, proprietário do local. "A coisa foi bem complicada", lamenta o artista.
Contrariando a previsão inicial de reabertura para junho do ano passado, a Casa de Cultura Mario Quintana só pôde reabrir suas portas ao público em 14 de agosto de 2024, após três meses e meio de fechamento, e ainda com obras em curso no térreo. "Além da limpeza pesada, fizemos a substituição das partes elétricas, sanitárias e de segurança, e o restauro arquitetônico, de esquadrias, e de dois acervos, além de benfeitorias nos espaços comerciais, graças aos recursos doados pelo Banrisul à Secretaria de Cultura do Estado. Somente para a CCMQ, foram necessários R$ 2,5 milhões", resume a diretora da Instituição, Germana Konrath.
Após período de recuperação, sala de cinema já possui programação aberta
Cinemateca Paulo Amorim / Arquivo / Divulgação/ JC
Também com recursos do Banrisul, a recuperação da Cinemateca Paulo Amorim ocorreu de forma gradual. A Sala Eduardo Hirtz foi a primeira a reabrir, em agosto de 2024. Já a Sala Norberto Lubisco foi a última a ser restaurada e voltou a funcionar recentemente, em fevereiro de 2025. "Uma coisa muito bacana foi ver que o público apoiou essa retomada, marcando presença nas sessões de cinema", aponta a curadora e gestora da Cinemateca, Mônica Kanitz. "Temos público fiel, que vem na programação regular – e a resposta das pessoas está sendo excelente. Foi uma experiência difícil (o período da tragédia), mas saímos mais fortes, mais unidos, com a população passando a valorizar mais o que os equipamentos de Cultura oferecem em termos de espaço e encontro", opina.
Reaberto, de forma parcial, em dezembro de 2024, em meio à recuperação de acervos e documentações, em paralelo às obras de restauração do prédio (financiados pelo Banrisul, com aporte de R$ 5,6 milhões por parte do orçamento da Sedac), o Margs investiu na elaboração de uma série de projetos técnicos e trabalhos de especialistas de diferentes áreas, que seguem atuando até o momento na restauração dos acervos. "É um processo paciencioso e demorado, e se dará ao longo dos próximos dois anos", explica o diretor da Instituição, Franciscol Dalcol. "A equipe atuante no Margs já restaurou mais de 200 obras até aqui. Paralelamente, outras 260 obras estão sendo restauradas na Universidade Federal de Pelotas, enquanto mais de 500 obras estão em fase de contratação de serviços, também externos, de restauro", emenda. O gestor complementa que 300 fotografias já foram reimpressas ou ampliadas, sendo que mais de dez obras estão sendo reconstruídas. "Todo esse processo tem envolvido os artistas que são autores das obras, que são convidados a colaborar e acompanhar os processos de restabelecimento."
Já o Memorial do Rio Grande do Sul está passando por um processo de restauração que inclui a renovação de coberturas, pisos, forros e esquadrias, além da modernização de instalações elétricas, sistema de climatização e recuperação de sanitários e fachadas. As obras, que devem durar 18 meses, são financiadas pelo PAC Cidades Históricas e visam revitalizar o prédio histórico, que também abriga o Museu Antropológico, o Arquivo Histórico do Estado e o Espaço Cultural Correios. "Não ficamos completamente fechados desde maio. A partir de julho, passamos a oferecer visitas pontuais para grupos menores, inclusive recebendo escolas sob agendamento, como ocorreu em setembro, na Semana Farroupilha", destaca a diretora da Instituição, Sylvia Bojunga.
"Em novembro, Mês da Consciência Negra, levamos a exposição itinerante do Margs, Palmares Vive, ao Clube 24 de Agosto, em Jaguarão, e tivemos encontros com estudantes, coletivos negros e comunidades quilombolas. Neste ano a exposição seguiu para Arroio Grande e vai percorrer outros municípios da Metade Sul. Essa é uma forma de nos fazermos presentes junto ao público, mesmo estando sem sede", comenta a gestora do Memorial do Rio Grande do Sul. "O Arquivo Histórico também não fechou completamente. O atendimento aos pesquisadores foi mantido nas terças e quintas e pode ser feito mediante agendamento", emenda Sylvia.