Aclamado na última edição do Festival de Curitiba, o espetáculo de teatro documental Meretrizes volta a Porto Alegre em curta temporada, com sessões nesta terça (11) e na quarta-feira (12), sempre às 20h, no Instituto Ling (rua João Caetano, 440). As apresentações da montagem, dirigida por Camila Bauer, integram a programação do 26º Porto Verão Alegre. Com atuação de Liane Venturella – que interpreta histórias reais de sete profissionais do sexo –, a peça conta com trilha sonora original assinada e executada ao vivo pela pianista Catarina Domenicci. Os ingressos custam entre R$ 21,00 e R$ 60,00 e estão à venda no site do Festival.
Realizada pelo Coletivo Gompa, a produção também leva ao palco duas trabalhadoras sexuais (Paula Assunção e Soila Mar), que, ao final da encenação, saem do meio da plateia para apresentar relatos de suas vivências, contar curiosidades e responder perguntas do público, em meio ao bloco de sua performance. A diretora da montagem pontua a urgência de levar o assunto para a cena, "desmistificando este tabu" e promovendo um debate que contribua para que a sociedade rompa com a discriminação em torno da prostituição (ocupação reconhecida pelo Ministério do Trabalho desde 2002). "O espetáculo é 'um grito' por respeito a todas as mulheres e a todas suas escolhas pessoais e profissionais", sinaliza Camila.
A artista explica que a decisão pelo gênero documental da peça parte da proposta de retratar a realidade, bem como debatê-la e compreendê-la. Buscando fontes autênticas para abordar o tema, em 2022 as integrantes do coletivo teatral se debruçaram em uma intensa pesquisa de campo – que durou aproximadamente 12 meses. Neste período, Camila e Liane conversaram com cerca de 30 profissionais do sexo para construir o roteiro e a dramaturgia. Parte dos depoimentos colhidos junto a mulheres de diversas idades e distintas classes sociais são projetados em áudio ou vídeo durante as apresentações de Meretrizes.
Em cena, a atriz interpreta sete personagens, mesclando as vozes de mulheres que vivem ou que viveram da profissão, a partir de depoimentos reais. "Ela transita por várias figuras, mostrando realidades bem diferentes: desde a acompanhante super luxo até a (prostituta) que cobra 20 reais e bate ponto na Galeria Malcon", destaca a diretora.
Usando da versatilidade peculiar de sua experiência nas artes cênicas para compor corpos e vozes diferentes entre si, Liane revela a alma de cada uma das personagens, aprofundando em seus trejeitos – como gestos, olhares, movimentos dos braços e pernas, e o jeito de andar e sentar das mulheres que conheceu durante a pesquisa de campo. Outras destas personagens reais são apresentadas no telão que integra o cenário (ambientado para lembrar um cabaré), durante algumas trocas de cenas.
Ainda que, por vezes, saia por alguns segundos para mudar o figurino, a atriz permanece o tempo todo no palco, acompanhada da pianista, que compôs músicas específicas para cada uma das figuras retratadas. O repertório é eclético: vai desde a música clássica até o samba, passando pelo pisero, o funk brasileiro, entre outros ritmos que descrevem a "vibração" das personagens, de acordo com cada história contada. "Há um jogo entre a atuação e a trilha sonora", destaca Camila.
A diretora antecede que uma das figuras que Liane interpreta é Paula (que depois entra pessoalmente para dar seu relato ao público), e ressalta que durante a pesquisa para a organização dramatúrgica, ela e Liane contaram com a consultoria da profissional, que também é estudante de Psicologia e contribuiu com os estudos das artistas, a partir do material de uma série de entrevistas que realizou com profissionais do sexo em todo o Brasil. "No caso deste espetáculo, optamos por um recorte da realidade dessas mulheres no Rio Grande do Sul", contextualiza Camila, emendando que, além de Paula, também Soila e Monique Prada (trabalhadora sexual e autora do livro Putafeminista/Ed. Veneta/2018) acompanharam os seis meses de ensaios e assinam a consultoria da montagem.
A soma dos relatos aborda diferentes fases da prostituição – uma das primeiras profissões do mundo e também da capital gaúcha. "O que nunca mudou foi o preconceito", destaca a diretora da montagem, sublinhando que, de forma unânime, este é o maior desafio enfrentado diariamente pelas trabalhadoras do sexo, exceto em alguns "momentos pontuais de violência, presentes também no cotidiano de qualquer outra pessoa, que trabalhe em qualquer profissão". Ela observa que, "ao contrário do que muitos pensam", várias dessas mulheres não vivem à margem da sociedade: "são casadas, exercem o seu trabalho em horário comercial e buscam os filhos nas escolas".
Por conta da reação preconceituosa de pessoas em contextos diversos (como durante o preenchimento de um cadastro em um consultório médico, entre muitos outros exemplos que poderiam ser dados), muitas dessas mulheres precisam ter vida dupla, revela Camila. "Inclusive muitas falas utilizadas na peça são de pessoas que não estão em vídeo, para preservar a identidade delas; outras são assumidas e aparecem na cena", comenta. Camila avalia que a montagem Meretrizes (que foi financiada pelo Fundo de Apoio à Cultura do Sistema Pró-Cultura RS), aproxima a ideia de arte e comunidade. "É uma peça que traz para o debate um assunto pouco falado em nossa sociedade, que é o direito que a mulher tem sobre o seu corpo e suas escolhas a partir do ponto de vista de uma das ocupações mais antigas da humanidade. Em meio a pautas feministas, queremos nos colocar ao lado todas as mulheres, com a esperança de que nenhuma tenha vergonha de sua profissão."