Temas como feminicídio e silenciamento das mulheres dão o tom da exposição Imagens do desassossego, em cartaz no Espaço de Artes da UFSCPA (rua Sarmento Leite, 245, prédio 1, térreo). A mostra da artista visual Sandra Gonçalves tem curadoria de Letícia Lau e pode ser visitada gratuitamente até o dia 9 de novembro, de segundas às sextas-feiras, das 9h às 20h; e, aos sábados, das 9h às 12h.
Professora titular e pesquisadora de fotografia da Ufrgs, Sandra explica que as obras são fruto de sobreposições de imagens com transparência. "Algumas delas receberam muitas camadas, com o objetivo de ganharem texturas", comenta. A artista afirma que as 12 imagens que compõem a mostra são recortes da série Tudo dança, transmutação – que trata de mulheres e do "seu estar no mundo", em que filtros de todas as ordens impedem uma visão clara do agora.
"Os trabalhos desta exposição que está em cartaz no Espaço de Artes da UFSCPA refletem as minhas sensações e percepções em resposta à pandemia de Covid-19 e suas consequências sociais", destaca Sandra. "Naquele período, eu me ocupei com a temática de doença e envelhecimento, da perda de mobilidade, da dor, do medo do vírus e da morte que nos espreita, na série Pandemia e Caos; depois emendei com Bestiário, que reflete sobre como a sociedade piorou, tornando-se mais binária e excludente, especialmente para aqueles que não se encaixam nos padrões estabelecidos", contextualiza. "Tudo dança, transmutação remete à intensificação desse cenário pós-pandêmico. No Brasil, o aumento de feminicídios e agressões reflete uma sociedade machista e destrutiva que desrespeita as diferenças e não aceita a recusa, afetando gravemente as mulheres."
Na contramão da submissão histórica imposta a esse público, as obras selecionadas pela artista em parceria com a curadora de Imagens do desassossego abordam a resiliência e a força feminina, marcada pelo filtro vermelho presente nas obras. "Nesse trabalho, eu coloco as mulheres no primeiro plano, mas de uma maneira assuntosa: grande parte delas estão nuas, ou com partes expostas, como forma de reafirmar esse corpo, essa carne, que foi queimada, açoitada e abusada durante séculos; e hoje é dona de si própria", revela. A cor vermelha que remete ao sangue menstrual e sublinha o sangue de dores físicas ou psicológicas, ou mesmo causado pela violência, ainda é uma alusão à ira de Lilith (figura mitológica interpretada por alguns como sendo a primeira esposa de Adão, expulsa do Paraíso por não se submeter ao marido) contra seus algozes.
"As imagens retratam um passado e um presente que oprime mulheres de todas as etnias, cis ou trans", observa Sandra. "É um trabalho que trata do sangue da dor, mas ao mesmo tempo das mulheres que expõem seus próprios corpos da maneira que quiserem. Embora pareçam presas aos modelos impostos pelos opressores, buscam liberdade", reforça. Natural da cidade do Rio de Janeiro, a artista visual –radicada em Porto Alegre há 20 anos – pesquisa, promove atividades de extensão e leciona na Fabico/Ufrgs desde 2005. Produzindo e expondo suas obras relacionadas à fotografia híbrida (que envolve técnicas analógicas e digitais) desde 2000, Sandra afirma que costuma abordar assuntos relacionados "ao tempo, ao corpo e ao contemporâneo".
A artista conta que, no caso dos trabalhos que compõem a série Tudo dança, transmutação (de onde saem as obras da mostra atual), se apropriou de imagens da História da Arte para pensar a questão da violência contra a mulher e realizar as sobreposições com alguns de seus registros autorais. "Em uma delas, eu uni uma pintura do Adão e Eva no Paraíso com Lilith e mixei com os seios de uma mulher, que tomam conta de quase toda a obra. É uma ironia a essa tentativa constante de dominação do corpo feminino – que não parte só dos homens, infelizmente é estrutural", avalia. Dispostas em formato horizontal, com cerca de 1m X 80 cm, as fotografias de Imagens do desassossego são tratadas de forma que "não parecem fotos", afirma Sandra.
A curadora de Imagens do desassossego pontua que a artista visual, através de sua lente e de apropriações de imagens captadas da internet, transforma as fotografias em um manifesto político e social. "Ao citar temas como o feminicídio, a violência e o silenciamento histórico das mulheres — cis e trans — as obras de Sandra Gonçalves se posicionam como um grito contra as opressões de uma sociedade misógina", afirma Letícia. "Seus trabalhos desnudam não só os corpos, mas também as feridas e as mazelas de uma parte do mundo que se mostra incapaz de acolher as diferenças."