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Publicada em 27 de Julho de 2024 às 09:40

Livro relembra o fervo eletrônico que mudou a noite de São Paulo

No livro Bate Estaca, Camilo Rocha perfila baladas e entrevista personagens das décadas de 1980 a 2000 para manter viva a memória da cena clubber na maior cidade do País

No livro Bate Estaca, Camilo Rocha perfila baladas e entrevista personagens das décadas de 1980 a 2000 para manter viva a memória da cena clubber na maior cidade do País

/CLAUDIA GUIMARAES/EDITORA VENETA/DIVULGAÇÃO/JC
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Folhapress
Até meados da década de 1980, balada era lugar para ficar bêbado e pegar alguém, e DJ era o cara que mandava para as caixas de som os hits da rádio. Como conta João Perassolo para a Folhapress, essa visão limitada da diversão noturna mudaria bastante nas décadas seguintes - os disc jóqueis passariam a ser considerados autores, tocando músicas novas para um público que não queria flertar nem beber até cair, mas só curtir o som e fazer parte de uma turma.
Até meados da década de 1980, balada era lugar para ficar bêbado e pegar alguém, e DJ era o cara que mandava para as caixas de som os hits da rádio. Como conta João Perassolo para a Folhapress, essa visão limitada da diversão noturna mudaria bastante nas décadas seguintes - os disc jóqueis passariam a ser considerados autores, tocando músicas novas para um público que não queria flertar nem beber até cair, mas só curtir o som e fazer parte de uma turma.
A trilha sonora desta mudança radical de comportamento foi a música eletrônica, e sua cidade irradiadora, São Paulo. Livro lançado nesta semana, Bate Estaca: Como DJs, Drag Queens e Clubbers Salvaram a Noite de São Paulo captura esta revolução ao retratar as casas noturnas e os personagens responsáveis por marcarem a noite e a cultura jovem paulistana, no período que vai da redemocratização até o início do século XXI.
O autor, o DJ e jornalista Camilo Rocha, ele próprio um personagem da cena eletrônica, dedica cada capítulo do livro a uma casa noturna, fazendo a conexão entre o clube e o tipo de som que ali tocava. Relembramos, por exemplo, o Sra. Krawtiz e a chegada do techno, em 1992, contexto que impulsionou as drag queens e a cultura do host e da hostess, pessoas que recebiam os convidados na porta.
Há seções para o histórico Love Club, a D-edge - casa ativa e bem-sucedida ainda hoje -, o extinto festival Skol Beats e também as raves de trance, que reuniam dezenas de milhares de pessoas em fazendas nos arredores de São Paulo. O texto flui como uma reportagem, com informações claras apresentadas em ordem cronológica, resultantes de anos de pesquisa.
Da leitura, se depreende que a capital paulista - hoje uma das principais cidades do mundo para a noite eletrônica - foi um local propício para a propagação da cultura da pista de dança. "A sociabilidade se dá muito nesses espaços, ao contrário do Rio de Janeiro, onde você tem a praia. Em São Paulo, por ser essa cidade 'carrocêntrica' e sem esses grandes espaços públicos, o clube, a discoteca e a danceteria acabaram tendo o papel da sociabilidade", diz Rocha, por telefone.
O autor também destaca a criatividade dos DJs de São Paulo, que se apropriavam de ritmos estrangeiros e davam a eles uma cor brasileira para conquistar o público. Esta antropofagia resultou, por exemplo, na faixa Sambassim, uma composição de Fernanda Porto depois remixada com uma batida de drum'n'bass pelo DJ Patife. A música estourou na virada para o século XXI, quando se tornou sinônimo de sofisticação ao juntar MPB e o estilo eletrônico surgido na Inglaterra.
Rocha dedica um capítulo do livro às casas noturnas da zona leste, região sempre fervilhante mas frequentemente esquecida na história clubber paulistana. Há o saboroso episódio de quando, por acaso, Marquinhos correu para casa para buscar discos e tocar pela primeira vez na matinê da Showbusiness, cobrindo um DJ que faltou.
Mais tarde, Marquinhos, o DJ Marky, se tornaria uma das caras da eletrônica brasileira no exterior, e a Showbusiness viraria a estrondosa Sound Factory, que atraía caravanas de várias regiões de São Paulo para a Penha, nos finais de semana, e lançou drag queens como Elloanigena Onassis e Lyza Bombom.
No início, a Sound Factory tentava emular os clubes de regiões centrais, diz o autor, mas com o tempo a casa encontrou a sua identidade. "Se o Hell's [balada que acontecia nos Jardins] era mais techno, a Sound Factory já começou a ir para o jungle, drum'n'bass."
No mais, acrescenta Rocha, casas fora das regiões centrais precisavam atender a um público muito grande e diverso, de modo que o DJ Patife alternava drum'n'bass com É o Tchan numa balada de Cidade Dutra, na zona sul, na qual discotecava. Nos Jardins e em Santa Cecília, os clubes eram menores e podiam focar numa única vertente de som eletrônico, sem misturar com outros estilos musicais.
Bate Estaca se insere numa ainda pequena lista de livros que registra o desenvolvimento da cena noturna da capital paulista e da qual fazem parte Babado Forte, de Erika Palomino, e Todo DJ Já Sambou, de Claudia Assef, além de algumas poucas teses acadêmicas. Se sobra material de leitura sobre o rock e a MPB, o mesmo não se pode dizer da música eletrônica.
Rocha conta que não deixar a memória clubber morrer foi o grande estímulo para a sua pesquisa, que afinal trata não só de baladas, mas da própria história de São Paulo. O texto traz entrevistas com DJs, donos de clubes, drag queens e produtores de festa, além de trechos em primeira pessoa, nos quais o autor conta as suas experiências de quem viveu o seu objeto de estudo antes de teorizar sobre ele.
Talvez um dos principais legados da noite eletrônica retratada no livro seja o acolhimento da diversidade sexual, esse conceito tão em voga hoje. Rocha lembra que "quem não viveu não tem ideia" do quão preconceituosos e machistas eram os costumes da época.
"Um homem não podia dar a mão para outro em homem em qualquer lugar que ia tomar porrada", diz, lembrando que as pistas de dança dos anos 1980 e 1990 foram pioneiras em quebrar este paradigma. "A cena de festas criava espaços onde tudo bem fazer isso, onde isso não era um problema. A questão da diversidade era valorizada. Então isso foi benéfico para a cidade como um todo."
 

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