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Publicada em 21 de Março de 2024 às 19:44

Arte de rua ganha espaço com multiplicação de murais em Porto Alegre

Mural em homenagem à ginasta Daiane dos Santos, do artista Kelvin Koubik, é a mais recente das pinturas em grande escala que transformam a Capital em uma galeria de arte a céu aberto

Mural em homenagem à ginasta Daiane dos Santos, do artista Kelvin Koubik, é a mais recente das pinturas em grande escala que transformam a Capital em uma galeria de arte a céu aberto

TÂNIA MEINERZ/JC
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Bettina Gehm, especial para o JC*
Bettina Gehm, especial para o JC*
A Elevada da Conceição, no Centro Histórico de Porto Alegre, é uma via construída para quem tem pressa. Por mais atrasado que se esteja, no entanto, é impossível olhar pela janela do carro ou do ônibus e não notar a pintura que desponta, imponente, colorida em meio ao concreto cinza. Afinal de contas, são 900 metros quadrados cobertos de azul, verde e amarelo e com uma personalidade gaúcha que quase todos reconhecem. O mural em homenagem à ginasta Daiane dos Santos, executado pelo artista Kelvin Koubik, é a mais recente das pinturas em grande escala que transformam a Capital em uma galeria de arte a céu aberto.

Porto Alegre completa 252 anos na terça-feira, 26 de março. Há alguns anos, a mudança na paisagem urbana inclui o avanço do muralismo - uma oportunidade de apreciar a arte de rua e também um presente a moradores e pessoas que passam pela cidade. A reportagem identificou 24 murais localizados em espaços públicos da Capital, quem somam 8,4 mil metros quadrados de arte.

As obras recobrem muros e, especialmente, paredes laterais sem janela dos edifícios. "Chamamos essas laterais de empenas cegas", explica a arquiteta Germana Konrath, diretora da Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ). "Elas não têm olhos para a cidade e a cidade não tem olhos para dentro desses edifícios. É um bloqueio visual. Os murais geram um diálogo, geram a possibilidade de uma manifestação do que está dentro ou do que está fora, querendo entrar."

Do lado de fora dos museus, sem cobrar ingresso e abertas 24 horas à visitação do público, as obras são um convite ao deslumbramento - pelo tamanho monumental, atenção aos detalhes e cores vivas. A artista Gugie Cavalcanti, uma das responsáveis pelas pinturas, arrisca outro adjetivo: "Os murais são muito potentes", diz. "Quando se trabalha oito horas por dia, você às vezes não vai ter tempo de ir num museu. A arte precisa estar no dia a dia para que se possa usufruir dela. Eu acredito que a arte é fundamental para o ser humano, é uma linguagem. E o muralismo nos ajuda a entender, enquanto sociedade, sobre esse vocabulário."

O fenômeno já era visto, bem antes, em São Paulo, metrópole referência em arte urbana. Aqui, no entanto, é recente e concentrado na região central da cidade. "São bairros de ampla democratização de público. O Centro reúne pessoas de vários níveis sociais e financeiros, até pessoas que não são daqui. O Centro é um grande hub de mobilidade", pondera Vinicius Amorim, curador é responsável pelo primeiro festival de muralismo de Porto Alegre, o Arte Salva. "Esse tipo de manifestação, que traz cor, alegria e vida, começa a mostrar que a cidade é legal e é de todo mundo. Acho que o projeto tem o poder de dizer para as pessoas que a cidade deve ser melhor, e que isso não depende só do poder público", afirma.
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Não se via obras em grande escala na capital gaúcha até que o Arte Salva desse o impulso para que as primeiras cinco fossem criadas, como se brotassem do chão, em novembro de 2021. E mais cinco, um ano depois. "Nossa cidade é pequena. A minha estratégia é povoar esses murais próximos para que o impacto visual fique mais evidente. No momento em que eu pulverizo isso, ele se dissipa", explica Amorim. "A dimensão de Porto Alegre joga a favor desse movimento, para realmente termos uma cidade super pintada."

A sensação de que a cidade se transformou da noite para o dia em uma coleção de quadros gigantes é descrita pela artista Gugie, natural de Florianópolis (SC). "O gaúcho tem uma coisa muito forte de se expressar. É uma necessidade. Quando eu pintei o Aurora negra, que foi a primeira vez em Porto Alegre, foram seis murais pintados… só que uma empena dessa dá trabalho, é uma produção muito louca. É difícil captar recursos, conseguir autorização", afirma. "Tinha que ser em Porto Alegre para acontecer uma coisa dessas."
 
 

Muralismo se concentra no Centro da Capital

'Quebra-tudo, abre caminhos', de Mona Caron e Mauri Neri, está na empena do prédio da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul

'Quebra-tudo, abre caminhos', de Mona Caron e Mauri Neri, está na empena do prédio da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul

TÂNIA MEINERZ/JC
Faz dois anos que Jacson Rodrigues saiu do Mato Grosso do Sul para morar na capital dos gaúchos. No dia em que foi conhecer o lugar onde passaria a trabalhar, não foi difícil encontrar o prédio. "Eu vinha descendo a avenida Borges de Medeiros, e, mesmo de longe, logo enxerguei o painel. Achei lindo, claro, até porque eu não era da cidade. Além de servir como uma referência, é muito bonito", recorda.

Rodrigues trabalha como segurança no edifício que abriga a Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul e que estampa o maior mural da cidade, chamado Quebra-tudo, abre caminhos. A obra de 975 metros quadrados representa a educadora, mãe de santo e presidente de escola de samba Beatriz Gonçalves Pereira, moradora da Ilha da Pintada. Uma pergunta, no entanto, inquieta o segurança quando ele olha para o mural: como é que fazem uma pintura tão alto assim?

Uma obra desse tamanho pode ser pensada por um artista, mas sempre é executada por vários. 
Entre pincéis, andaimes e - muita - tinta, as condições climáticas no momento da pintura podem ser um fator decisivo. "Trabalhar em altura já requer o dobro de atenção. E, se o vento atinge certa velocidade, não dá para subir", explica Bruno Schilling, que pintou o mural Estrutura cromática #001 em um prédio da rua Caldas Júnior.

Uma vez lá em cima, é fácil ficar perdido em termos de proporção da obra. Por isso, existem algumas formas de projetar o desenho inicial na empena para realizar a pintura. Uma delas é projetar as linhas. Outro jeito é quadricular toda a parede em módulos de um metro quadrado e depois passar o desenho, parte por parte - como fez Schilling, de forma metódica.

Existe ainda o grid orgânico. Brenda Klein, que idealizou a obra A poesia existe nos fatos, usou esse método para pintar os rostos de oito mulheres na lateral da Casa do Estudante da Ufrgs (av. João Pessoa). "A gente risca todo o edifício com formas, números, letras e desenhos aleatórios. Depois fotografa o prédio bem de frente e coloca as linhas do desenho digitalmente em cima dessa foto. Aí a gente vai ter um mapa para seguir: de como passar cada parte da obra em cima dos desenhos", explica. "De perto, não dá para ver muito bem o que está acontecendo. Mas, quando tu te afastas, o desenho se forma."

Antes da pintura, porém, é preciso conseguir autorização e captar recursos para realizá-la. "Essas obras, apesar de normalmente estarem numa parede que é propriedade privada, interferem no espaço público. Pela dimensão das pinturas, é difícil de acontecer sem o patrocínio de empresas", afirma Andréa Ilha, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do RS. Além desse aporte financeiro, a Lei Federal de Incentivo à Cultura é responsável por viabilizar grande parte dos murais em Porto Alegre.

No caso do festival Arte Salva, é o próprio curador que conversa com os síndicos dos edifícios e consegue a autorização para pintar os murais. "As pessoas tinham tanto preconceito com o tema que era impossível conseguir autorização de algum prédio. O artista já quer pintar isso há 15 anos, mas faltava alguém para costurar essas pontas", conta o curador do festival, Vinicius Amorim, que tratou de fazer isso pela primeira vez em 2021.

"Eu escrevo o projeto. Com ele aprovado, eu capto o recurso com as empresas que enxergam um valor nesse tipo de projeto; eu envolvo os prédios que também acham interessante e conecto com o artista para fechar", explica. "Em 2022, foi bem mais fácil, porque eu apresentei fotos de murais incríveis e disse: é isso que vamos fazer no teu prédio."

Impacto urbanístico

Galpão que abrigou a sede da antiga Companhia Fábrica de Vidros Sul-Brasileira ganhou um mural de Paixão Côrtes, feito pelo consagrado artista Kobra

Galpão que abrigou a sede da antiga Companhia Fábrica de Vidros Sul-Brasileira ganhou um mural de Paixão Côrtes, feito pelo consagrado artista Kobra

TÂNIA MEINERZ/JC
"Existe um dispositivo dentro das artes visuais, em que a gente consegue acionar certas sensações através dos deslocamentos", diz a artista Gugie. Ela se refere à transição de um prédio "vazio" para um espaço que serve de plataforma a pinturas gigantes. "De repente, ali tem uma arte, uma mensagem, uma beleza - ou até algo agressivo; também 'é sobre isso'. Enfim: afeta; então existe uma conexão com a arquitetura, que é muito importante."

A auxiliar de veterinária Ândrea Duarte desce do ônibus todos os dias na avenida Loureiro da Silva e diz que não consegue lembrar de como era o local antes da obra Soprano: "é como se estivesse ali desde sempre". Na mesma rua, outros prédios estampam propagandas gigantes da nova série do streaming ou do mais rápido plano de internet. É quase impossível não ver um painel publicitário ou então um mural que ocupa vários andares de um edifício. Para Vinícius Amorim, ambos utilizam lógicas parecidas. "A cidade está cheia de painéis de venda de produtos. Acho que a gente vem para hackear esse sistema: ao invés de querer vender algo, queremos impactar de uma maneira positiva a vida das pessoas", afirma.

O muralismo tem suas origens na contracultura. "Não surge necessariamente no âmbito das artes. Os murais eram vistos, inicialmente, como vandalismo, de uma maneira sempre pejorativa", explica a arquiteta Germana Konrath. Mas artistas como Os Gêmeos (SP) começaram a virar essa chave: "A população começa a entender os murais como uma manifestação artística legítima e passa inclusive a reivindicá-los. Hoje em dia, eles são usados em áreas que passam por revitalização ou alguma qualificação urbana", afirma Germana. Os murais passam a ter valor, também, para a iniciativa privada, que começa a colher seus frutos positivos. Logo na entrada de Porto Alegre, no Acesso Um, duas construtoras promoveram um mural que homenageia o grupo musical Os Fagundes. Perto dali, no 4º Distrito, outra construtora trouxe à Capital o consagrado artista Kobra e custeou o trabalho dele para criar um mural de Paixão Côrtes. A obra foi pintada no galpão que abrigou, na primeira metade do século XX, a sede da antiga Companhia Fábrica de Vidros Sul-Brasileira. Agora, a construção vai ser transformada em um "complexo multiuso".

"Além de impactar as pessoas, a arte urbana tem poder na revitalização dos espaços. Assim, promove o desenvolvimento econômico e cultural", avalia Amorim. "Cria-se todo um polo criativo - e turístico - a partir das pinturas. Isso é business."

Projetando o anônimo e o memorável

Mural de 750 metros quadrados na empena do prédio do IPE Saúde homenageia o ambientalista José Lutzenberger

Mural de 750 metros quadrados na empena do prédio do IPE Saúde homenageia o ambientalista José Lutzenberger

ISABELLE RIEGER/JC
A Virada Sustentável, principal festival de sustentabilidade realizado no País, criou uma série de três murais chamada Personalidades. Os primeiros dois foram pintados por Kelvin Koubik. Em novembro de 2022, foi inaugurada a que homenageia o ambientalista José Lutzenberger. O mural de 750 metros quadrados fica no prédio do IPE Saúde (avenida Borges de Medeiros). Koubik também pintou a ginasta Daiane dos Santos, no final de 2023.

"Eu coloco o sobrenome dela em primeiro plano, porque representa várias coisas na história dela. O elemento da ginástica, toda a família que sempre apoiou, e dos Santos é um sobrenome popular. Eu acho que tem uma coisa ali de centro, urbano mesmo, da cidade acontecendo, que faz muito sentido na história da Daiane. Para mim, foi o lugar perfeito, porque ela é uma pessoa que se considera 'do povo'", diz o muralista. Outros murais exibem rostos desconhecidos, mas também cheios de significado. Aurora negra, concluído em novembro de 2021 num prédio da rua Senhor dos Passos, é uma colaboração entre os artistas Braziliano, Felipe Reis, Gugie Cavalcanti e Negritoo. A parceria resultou em uma pintura de 684 metros quadrados, exaltando a negritude. Gugie pintou a parte superior esquerda da obra. "Eu fiquei imaginando que um menino negro olhando para o céu ia trazer grandes sensações para as pessoas. Foi isso que eu trabalhei, as sensações que eu poderia provocar", lembra.

A artista também realizou o mural Leia-se, que decora e demarca o Museu do Hip Hop, na Vila Ipiranga. "Um livro enorme sendo enfiado na sua cara. Uma menina te alcançando um livro sem falar nada, só pega e lê" - é assim que Gugie descreve a obra de 400 metros quadrados. "O título é Leia-se porque, para mim, o hip hop é sobre autoconhecimento", pondera.

A figura humana gera identificação: rostos conhecidos ou anônimos, elevados à dimensão monumental, ganham um caráter quase que divino aos olhos dos transeuntes que andam, pequeninos, ao redor das empenas coloridas. Por outro lado, aquilo que é abstrato gera a tentativa de entender. "Quando se trabalha com abstracionismo ou com geometria, existe do espectador uma certa insistência em compreender a obra. Não o que ela quer dizer, mas como ela funciona, qual a ideia dela", diz Bruno Schilling. O artista conta que, quando pintou Estrutura cromática #001, o prédio tinha uma altura privilegiada. "Se você analisar a composição da obra, ela se repete. Se fosse escalonada, digamos que ela poderia chegar até o céu. A ideia foi criar uma estrutura que conectasse o chão com o céu através de cores, formas e transições", explica.

Luis Flavio Trampo, um dos precursores da arte de rua e do graffiti no RS, pintou uma espécie de pássaro geométrico para a segunda edição do Arte Salva. Chamou a obra de Vi-a-ser. "Usei uma corda como compasso. Usei uma régua gigante de alumínio. É uma mistura de tecnologia com técnicas ancestrais, no que eu considero que foi uma grande experiência a céu aberto", afirma. Para o artista, a arte urbana dificilmente vai ser compreendida logo de cara: "Primeiro, as pessoas vão ver somente um colorido. Isso é o que vai instigando elas a passar de novo e olhar - e, de repente, perceber". A pintura de Trampo esconde-exibe elementos como a semente da vida e a proporção áurea. "E no topo tem um pássaro que, num prédio daquele tamanho, sugere liberdade", completa o artista.

Uma exibição artística sem barreiras

'Menina do Jardim' é um dos murais do artista Erick Citron que podem ser conferidos pelas ruas da Capital

'Menina do Jardim' é um dos murais do artista Erick Citron que podem ser conferidos pelas ruas da Capital

TÂNIA MEINERZ/JC
O Centro de Porto Alegre concentra alguns museus de arte com entrada gratuita. Mas quem não está habituado a frequentar esses espaços - ou trabalha em outros locais durante o horário de funcionamento dos museus - encontra, nos murais, uma exibição sem barreiras. As obras em grande escala estão ali para todos verem.

"As pessoas ainda não se sentem convidadas a ir ao museu. Não é uma questão de pagar, é uma questão do despertar para a arte", observa Vinicius Amorim, que enxerga no muralismo uma alternativa para esse cenário.

Uma das propostas dos murais é democratizar a arte. Apesar disso - ou então justamente por isso - estão concentrados, em sua maioria, no Centro da Capital. "Eu acredito que o Centro da cidade sempre é uma vitrine importante para futuros projetos e para atrair investidores. Mas o nosso sonho, enquanto artistas urbanos, é que isso se espalhe pelas periferias também", afirma o grafiteiro Trampo.

A arquiteta Germana Konrath lembra que essa concentração de murais pode ser resultado exatamente do que é considerado um mural ou não. "Provavelmente, é menos fácil de ter as obras formalizadas, mapeadas e identificadas até entendermos que o que há na periferia também é considerado muralismo", explica. Conforme a diretora da CCMQ, a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) planeja intervenções artísticas em territórios já mapeados com baixos índices de qualidade de vida e "o governo quer atuar nessas comunidades". O mural mais afastado do Centro mapeado pela reportagem é do artista Erick Citron, uma explosão de cores em meio a várias construções de tijolo a vista. A obra homenageia Nelson Mandela, Elza Soares e Sabotage na lateral da Casa do Hip Hop Rubem Berta. O local é um antigo posto da Brigada Militar, desativado. Em 2023, a prefeitura concedeu o uso do imóvel ao Instituto Cohab É Só Rap e custeou a execução do mural.

Enquanto durar

"Toda obra é efêmera", foi o que a artista Brenda Klein respondeu quando questionada sobre como enxerga o fato de que os murais não duram para sempre. "Embora possa durar muito, muito tempo, nada é eterno. Eu sinto que a pintura mural tem um tempo de exposição.

Na rua, tá tudo fluindo o tempo todo, é muito dinâmico e tudo bem, porque é algo que pode ter um descontrole. A obra está lá para ser vista enquanto estiver lá", pontua.

Se os murais ficam desgastados com a ação do tempo, tudo indica que isso não acontece com o muralismo em si. Na verdade, parece ser o contrário.

O festival que trouxe os primeiros grandes murais a Porto Alegre, pelo menos, vai ter mais uma edição. "A ideia é que o evento mude um pouco. A gente vai tornar ele maior, fazer mais murais e trazer artistas gringos", adianta o curador, Vinicius Amorim. O festival vai passar a se chamar Olhe para cima.

*Bettina Gehm é graduada em jornalismo pela Ufrgs. Já colaborou com veículos como Matinal Jornalismo e revistas Veja Saúde, Crescer e Superinteressante. Atualmente, é repórter do Sul21.

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