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Cultura

- Publicada em 12 de Maio de 2023 às 00:40

A trajetória de Rita Lee, estrela maior do rock brasileiro

Cantora e compositora exerceu a liberdade artística como bandeira maior, revolucionando a música brasileira

Cantora e compositora exerceu a liberdade artística como bandeira maior, revolucionando a música brasileira


/WILMAN/ACERVO UH/FOLHAPRESS/JC
"Quando morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá. Fãs, esses sinceros, empunharão meus discos e entoarão Ovelha Negra, as TVs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória. Nas redes virtuais, alguns dirão: 'Ué, pensei que a véia já tivesse morrido."
"Quando morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá. Fãs, esses sinceros, empunharão meus discos e entoarão Ovelha Negra, as TVs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória. Nas redes virtuais, alguns dirão: 'Ué, pensei que a véia já tivesse morrido."
O trecho, parte da autobiografia de Rita Lee, ilustra bem a personalidade da cantora e compositora, que faleceu no começo da semana, aos 75 anos. O livro relata, sempre direto e reto, tanto passagens divertidas, a exemplo das travessuras na infância e na adolescência, quanto trágicas, como o abuso de álcool e drogas e o estupro que sofreu aos seis anos por um técnico que foi a sua casa consertar uma máquina.
A experiência artística não começou muito bem, como relata Laura Mattos para a Folhapress. Quando Rita tinha entre seis e sete anos, a conceituada pianista Magdalena Tagliaferro lhe deu aulas de piano em troca de um tratamento que fez com seu pai, Charles, dentista de origem americana. Em uma audição, a menina ficou tão nervosa que fez xixi no banquinho do piano. A professora a aconselhou a não seguir na música porque ela tinha medo de palco. Rita não seguiu o conselho e, na adolescência, participou de diferentes conjuntos, cantando e tentando tocar instrumentos, até chegar ao quarteto de meninas Teenage Singers.
A brincadeira ficou mais séria quando elas conheceram, em um festival no teatro João Caetano, em 1964, os meninos do Wooden Faces, do qual fazia parte Arnaldo Batista, que já se destacava no baixo. Aproximaram-se, Rita e Arnaldo, com 16 anos. Iniciaram um namoro e, com o tempo, as bandas se uniram.
Do entra e sai de integrantes, ficaram seis, entre eles os namorados e Sérgio, irmão caçula de Arnaldo, guitarrista, que aos 13 anos abandonou a escola para se dedicar à música. Tornaram-se o Six Sided Rockers. Em 1966, gravaram um compacto, com novo nome, O'Seis. Depois viraram três, com Rita Lee, principal vocalista e percussionista, e os irmãos Arnaldo Batista no vocal, no teclado e no baixo, e Sérgio Dias no vocal e na guitarra. Passaram a ser Os Bruxos e se tornaram banda fixa no programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von, da Record. O apresentador, fã do livro O Império dos Mutantes, sugeriu que se tornassem Os Mutantes.
Além de um rock sem a ingenuidade do iê-iê-iê da Jovem Guarda, o grupo chamou a atenção pelos figurinos e pela performance no palco, e nisso a liderança era de Rita. Depois de um vestido curto e de um coração vermelho desenhado com batom na bochecha, no Festival de Música Popular Brasileira da Record de 1967, ela subiu o tom em 1968. No 3º Festival Internacional da Canção, o FIC, em que Os Mutantes acompanharam Caetano Veloso em É Proibido Proibir, Rita se apresentou com um vestido de noiva emprestado da atriz Leila Diniz, que havia usado o figurino em uma novela. O evento ficou marcado pelo discurso de Caetano contra a reação da plateia, que vaiava e arremessava ovos, tomates, latas e garrafas nos artistas. "Vocês não estão entendendo nada. Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos", esbravejou.
Rita adorou. Não tinha paciência com jovens de esquerda que só aplaudiam músicas de protesto, com letras e arranjos óbvios, e não entendiam o quão transgressor podia ser a mistura da canção popular brasileira com o pop internacional em meio a experimentações sonoras. Essa foi a base da tropicália, movimento artístico liderado por Gil e Caetano, do qual Os Mutantes fizeram parte. No LP Tropicália, de 1968, a banda participou de três faixas, entre elas Panis Et Circensis, com o provocativo refrão "Essas pessoas na sala de jantar/ Estão ocupadas em nascer e morrer".
Rita e os irmãos Batista investiram em composições próprias e lançaram em 1968 o primeiro LP. Até 1972, quando Rita sairia do grupo, seriam mais quatro, um por ano, emplacando hits como Top Top, Balada do Louco, Vida de Cachorro e Ando Meio Desligado.
Mais do que farra, para o trio, assim como para muitos músicos da época, as drogas eram um caminho artístico de expansão mental. O descontrole, contudo, logo apresentaria a conta para os jovens. Ao longo da vida, a cantora iria enfrentar um entra e sai de internações por abuso de álcool e drogas.
Casamento e banda viveram idas e vindas, até que ambos acabaram para Rita quando ela foi expulsa dos Mutantes em 1972, episódio do qual guardou muita mágoa. Da raiva e da depressão, emergiu a ânsia de provar que, apesar de "o clube do Bolinha dizer que, para fazer rock, era preciso ter colhão, também dava para fazer com útero, ovários e sem sotaque feminista clichê". Em 1975, o disco Fruto Proibido, da Tutti Frutti, marcou uma ruptura na música brasileira. Com capa cor-de-rosa e canções com temática feminina, mostrou que era, sim, coisa de mulher Esse Tal de Roquenrou, um dos sucessos do LP.
A quebra de fronteiras entre ritmos e influências, com a qual Rita já flertava antes mesmo da tropicália, tornou-se central na consolidação de sua carreira a partir do encontro com Roberto de Carvalho.Com ele, como escreveu na autobiografia, seu "rockinho radical virou rockarnaval, tango, bossa, pop, bolero e tal". Após o nascimento do primeiro dos três filhos do casal, Rita deixou os Tutti Frutti e iniciou com o marido a terceira fase de sua carreira, que seria a mais bem-sucedida. Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, explodiu com uma trilha sonora autobiográfica do casal apaixonado, em que uma mulher pela primeira vez cantava sem pudor sobre desejos sexuais.
Em 1991, lançou o LP Bossa'n'roll, seu projeto financeiramente mais bem-sucedido. Mas chegou ao fundo do poço. Diante do ultimato de Roberto em relação a álcool e drogas, foi morar sozinha. Certo dia, de tão chapada, despencou da varanda, teve o maxilar esfacelado e perdeu 40% da audição do ouvido direito. Roberto cuidou de sua recuperação. Quando ela tirou os pontos e conseguiu cantar Mania de Você, ele a pediu em casamento. Na saúde e na doença, ainda enfrentariam muitas recaídas de Rita, até que ela decidisse ficar "careta" a partir do nascimento da primeira neta, em 2005. Após a aposentadoria dos palcos, em 2013, viveu com Roberto em uma casa de campo onde pintava, cozinhava, escrevia e cuidava dos bichos de estimação.
A ideia de se aposentar veio na turnê dos 45 anos de carreira, em 2012, que se encerraria em Aracaju. A despedida foi a sua cara. Ao ver policiais abordando pessoas da plateia que fumavam maconha, interrompeu o show: "Me dá esse baseadinho que eu vou fumar aqui e agora. Seus cafajestes FDP". Foi detida. Com o incidente, uma nova despedida foi marcada para 2013, no Anhangabaú, em 25 de janeiro, aniversário de São Paulo. Nada mais justo que tenha sido na cidade onde nasceu e da qual, como cantou Caetano, Rita foi a mais completa tradução.