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- Publicada em 15 de Dezembro de 2022 às 18:58

Como Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, virou marco de uma geração

Escrito após acidente que deixou Marcelo tetraplégico, livro tornou-se fenômeno de vendas nos anos 1980

Escrito após acidente que deixou Marcelo tetraplégico, livro tornou-se fenômeno de vendas nos anos 1980


EDITORA BRASILIENSE/REPRODUÇÃO/JC
Numa noite de dezembro de 1982, Marcelo Rubens Paiva recebia seus amigos para o lançamento de seu primeiro livro, no Sesc Pompeia, na zona oeste de São Paulo. Paiva tinha 23 anos, cursava a Escola de Comunicações e Artes e era um completo desconhecido.
Numa noite de dezembro de 1982, Marcelo Rubens Paiva recebia seus amigos para o lançamento de seu primeiro livro, no Sesc Pompeia, na zona oeste de São Paulo. Paiva tinha 23 anos, cursava a Escola de Comunicações e Artes e era um completo desconhecido.
A data, conforme relata Ivan Finotti para a Folhapress, marcava o terceiro aniversário do acidente que mudara sua vida em 1979. Ao pular no açude de um sítio à beira da rodovia Bandeirantes, em Campinas, no interior paulista, Paiva quebrou a quinta vértebra cervical e comprimiu a medula. Ficou tetraplégico. O livro que lançava naquela noite, Feliz Ano Velho, começava com seu acidente.
"Subi numa pedra e gritei: -- Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin. Estava debaixo d'água, não mexia os braços nem as pernas, somente via a água barrenta e ouvia: biiiiiiin."
Mas, ao terminar, a obra fazia muito mais do que contar uma tragédia. Feliz Ano Velho era, ao contrário do que se poderia esperar, uma explosão de sexo, drogas e rock'n'roll. Paiva falava das relações com suas namoradas, da maconha que formava os anéis esfumaçados de sua mente e das noites alucinantes nos clubes de São Paulo. E, assim, Feliz Ano Velho se tornou, além de um fenômeno de vendas, o romance que representava uma geração. Um ícone.
"A missão era retratar uma geração chamada de alienada, a 'geração AI-5', que cresceu durante a reforma educacional da ditadura militar, geração que Renato Russo imortalizou como Geração Coca-Cola, considerada consumista, fútil e apolítica, numa época em que os pais proibiam os filhos de ler gibis", escreve Paiva no prefácio da edição comemorativa de 40 anos de Feliz Ano Velho, que sai agora pela Alfaguara.
A obra falava também, e muito, dos problemas decorrentes do acidente. Paiva mostrava o universo de deficientes físicos, e do preconceito que sofriam, sempre associados a tristeza e doenças, "quando na verdade era um grupo muito bagunceiro, maluco, sarcástico". "Quis falar abertamente de drogas, de dilemas da virgindade, do primeiro amor."
O coquetel molotov criado por Paiva acertou no alvo. Segundo a lista dos mais vendidos da revista Veja, Feliz Ano Velho retirou o primeiro lugar de não ficção das mãos de Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada, Prostituída. "Você, Marcelo Rubens Paiva, inaugurou a revolucionária categoria do 'escritor pop star'. Porque absolutamente todo mundo te leu! Era você e Christiane F., anos 1980 na veia", escreveu a amiga e atriz Maria Ribeiro na apresentação dessa nova edição.
Àquela noite de dezembro não faltou folclore. Luiz Schwarcz, hoje à frente do grupo editorial que relança Feliz Ano Velho, era um dos diretores da Brasiliense que publicava aquela primeira edição. Ao chegar à noite de autógrafos, se deu conta que os livros não estavam lá. "A biblioteca do Sesc havia comprado alguns títulos da Brasiliense e, quando perguntamos se os livros haviam chegado, responderam que sim. Mas estavam se referindo aos outros, não aos do Marcelo", diz ele. Schwarcz encontrou quem tinha as chaves do depósito da editora e conseguiu que os livros chegassem com duas horas de atraso.
"Era um livro importante para a Brasiliense, em especial para o Caio Graco [dono da editora, morto há 30 anos], que era amigo da família e visitava Marcelo no hospital", lembra Schwarcz. Mais do que isso, foi Graco quem achou que havia um livro na história de Paiva e pediu para que o rapaz o escrevesse. "Antes de ser publicado, o livro não era uma unanimidade na editora", afirma o editor. "Para quem não conhecia o Marcelo - e eu não o conhecia -, não imaginávamos que ele pudesse escrever um livro que representasse uma geração, estando naquela situação após o acidente. Nós não botávamos fé", resume. "Mas foi uma grande sacada num momento histórico, uma obra chave para a literatura brasileira. O Caio foi visionário."
Em seu prefácio, Paiva diz que o dia mais importante de sua vida não foi o dia da morte de seu pai, Rubens Beyrodt Paiva, nos porões da ditadura, quando ele tinha 12 anos. Nem o do acidente, quando tinha 20. Mas sim o dia em que Graco disse a ele "por que você não escreve sobre isso que está acontecendo?".
Na época, a Brasiliense já era um fenômeno no Brasil. Após Graco assumir a direção da editora, em 1975, ele passou a lançar coleções de livretos que marcaram época, como a Primeiros Passos, em 1980, a Tudo É História, em 1982, e, finalmente, no mesmo ano, a Cantadas Literárias, pela qual saiu o livro de Paiva. Essas coleções falavam com o público jovem, o que em si já era uma espécie de revolução. "Ninguém pensava em livros para jovens naquela época", diz o jornalista Matinas Suzuki Júnior, ex-editor da Ilustrada, da Folha de S.Paulo, e hoje na Companhia das Letras.
Suzuki traça um panorama que insere Feliz Ano Velho em um contexto político e cultural mais abrangente. Para ele, o livro de Paiva representa parte do braço literário de um movimento geral dos anos 1980 que pôs a cidade de São Paulo em evidência nunca antes vista na história do Brasil.
"São Paulo entra de um jeito na ditadura militar e sai de outro na volta da democracia. São Paulo já era rica, mas era provinciana. As grandes coisas vinham do Rio de Janeiro, ou da Bahia, que foi muito efervescente nos anos 1960. Politicamente, é em São Paulo que se gestam os dois partidos que dividiriam o poder nas próximas décadas, o PT e o PSDB. Também acontece no final dos anos 1970 a criação de uma nova geração do movimento estudantil", diz ele.
"Começam a aparecer sinais de todos os lados na vida cultural. A própria Brasiliense, que se torna a editora quente dos anos 1980, faz essa inversão com o Rio, de onde vinha a Civilização Brasileira, a Record, a José Olympio e muitas outras. Na literatura, há um movimento de poesia ligado ao surrealismo, com Roberto Piva e Claudio Willer. Também um novo renascimento da poesia concreta, com a publicação de Pós-Tudo, de Augusto de Campos. E, é claro, o livro do Marcelo, que estoura de vender, vira peça de teatro, vira filme. Uma geração se forma lendo esse livro". O próprio Sesc Pompeia, onde Paiva lançou o livro em 1982, havia sido inaugurado naquele ano e fora palco, dias antes, do festival punk O Começo do Fim do Mundo, organizado pelo dramaturgo Antonio Bivar.
As danceterias dominavam a noite paulistana, com casas como Radar Tantã e Madame Satã se tornando referência para o País. No rock, bandas como Fellini e Akira S & As Garotas que Erraram se destacavam na cena independente, enquanto Ultraje a Rigor, Titãs e Ira se tornavam conhecidos nacionalmente. Nas HQs, os três amigos Glauco, Laerte e Angeli abriam um novo mundo ao humor. No futebol, a Democracia Corinthiana. No teatro, o grupo Macunaíma. No largo São Bento, o hip-hop e o break. Nos Jardins, Rogério Fasano iniciava um movimento que faria de São Paulo referência gastronômica mundial. "Para onde quer que se olhasse, havia novas ideias. A cidade estava cheia de vida", diz Suzuki.
Nesse contexto, Feliz Ano Velho é uma das marcas desses anos 1980 paulistanos. É estimado que tenha vendido 10 mil exemplares a cada mês de 1983. Mas os números aumentaram, conforme foi passando por outras editoras, como Siciliano e Círculo do Livro. Segundo um cálculo informal recente feito por Paiva e Schwarcz, a obra pode ter vendido 1,2 milhão de cópias.
Quatro décadas depois, Marcelo Rubens Paiva retornou ao Sesc Pompeia, na última quinta-feira, para o lançamento da edição comemorativa, que traz ainda um caderno de fotos com fac-símiles dos originais rabiscados, além de fotografias e reportagens da época. Desta vez, a editora não se esqueceu de mandar os livros para a noite de autógrafos.
 
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