Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Música

- Publicada em 20 de Novembro de 2022 às 00:05

Em Porto Alegre, Bonnie Tyler celebra carreira de mais de 50 anos com grande noite de rock

Artista galesa cantou seus principais sucessos em sua primeira turnê na América do Sul

Artista galesa cantou seus principais sucessos em sua primeira turnê na América do Sul


TÂNIA MEINERZ/JC
Até que ponto a idade importa quando se quer falar sobre alguém? O tempo de carreira de artistas é um ponto de destaque em suas trajetórias e nas relações com os fãs, mas quando que o tempo de vida de alguém pode, por algum motivo, ser considerado de “interesse público”? Qual a maneira mais responsável, inclusive, de um jornalista abordar esse tema?
Até que ponto a idade importa quando se quer falar sobre alguém? O tempo de carreira de artistas é um ponto de destaque em suas trajetórias e nas relações com os fãs, mas quando que o tempo de vida de alguém pode, por algum motivo, ser considerado de “interesse público”? Qual a maneira mais responsável, inclusive, de um jornalista abordar esse tema?
Mesmo se opondo a qualquer juízo de valor, não há uma resposta definitiva, o que é lógico quando se leva em consideração a individualidade de cada caso. Madonna, após ser perfilada pela New York Times Magazine em 2019 na entrevista Madonna at Sixty (Madonna aos sessenta), criticou o foco que ela julgou pequeno em seu trabalho artístico e excessivo sobre assuntos superficiais e especialmente sua idade, assuntos que, segundo ela, “jamais seriam mencionados se eu fosse um HOMEM!” (grifo dela).

Cher, por outro caminho, fala sobre esse fato da vida de maneira mais prática. “Eu odeio. Que foi, vou dizer que eu gosto? Não, não gosto. Nenhuma mulher honesta vai dizer que é tão legal”, disse ela ao The Guardian em 2020, na época aos 74 anos. “Quando eu estava fazendo turnês nós costumávamos fazer dois shows por noite e depois sair para dançar a noite toda”, fala, lamentando que hoje precisa de muito mais descanso. Ao ser chamada de ícone em reportagens, ela estranha. "Na minha mente, um ícone sempre tem que ser velho para ser icônico. Eu não consigo pensar como velha ainda”, diz. “É divertido mas eu não levo a sério, porque… isso significa que você apenas durou mais do que todo mundo?”

Já Gal Costa, cuja voz se silenciou dilacerantemente cedo demais aos 77 anos no último dia 9, via a passagem do tempo como natural, mas que “significa que estamos perto de partir deste mundo”. Na sua percepção sobre a idade, ela trazia sua experiência pessoal com uma leveza esclarecedora, e que hoje, com ela em outro lugar, fica agridoce. “Eu adoro a vida, ela é preciosa. É um milagre”, disse Gal em 2021 à Revista Veja. “Quero viver muito. Não me sinto velha: tenho uma alma jovem. De repente, eu me percebo com 75 anos como um susto. Mas um susto no bom sentido”.

Cada uma com uma percepção diferente, todas guiadas por um ponto em comum: o tempo está aí, e seguimos com ele, cada um de um jeito e sem dever explicações. Em uma noite cheia de energia em Porto Alegre, Bonnie Tyler evidencia: idade é trajetória e fé no futuro. Se apresentando para uma casa cheia no Auditório Araújo Vianna nesta sexta-feira (18), essa é sua primeira turnê na América do Sul, com oito paradas no Brasil e uma no Uruguai. Essa novidade em sua carreira não passou despercebida pela cantora galesa, que em mais de uma oportunidade falou que estava muito feliz de estar no Brasil e cobrando a si e a todos, em tom de brincadeira, por não ter vindo antes.

O show colocou o tempo, tanto em sua passagem quanto em sua reversão temporária através da nostalgia, em um lugar de destaque. A artista observou no palco que começou a carreira em 1969 aos 17 anos na sua terra natal, o País de Gales, e hoje está com os números invertidos, aos 71, otimista com o que a vida trará. Com mais de 30 apresentações agendadas por toda a Europa a partir de dezembro e 2023 adentro, ela segue sua trajetória singular no rock, e também pop e country, colhendo os frutos do sucesso sem nunca ter saído dos holofotes. Em entrevista ao jornal australiano Sydney Morning Herald em 2019, Bonnie disse que “pessoas me perguntam se eu achei mais difícil do que seria para um homem envelhecer na indústria musical, mas eu nunca enfrentei esse tipo de discriminação. Talvez porque eu tenho uma voz de rock. Homens em bandas me disseram que eles precisariam fumar cem cigarros e gritar para ter uma voz como a minha”. Realmente única e inconfundível, sua voz se uniu à presença de palco e o excelente acompanhamento que transformaram a pouco mais de uma hora de show em um dos grandes eventos musicais do ano na Capital.

Desde a abertura da venda dos ingressos até a realização do evento foram quase três anos de expectativas. Com o começo do alerta mundial após o surgimento da Covid-19, a apresentação foi inevitavelmente suspensa, assim como todos os eventos culturais presenciais. Agora, Bonnie retorna aos palcos incluindo Porto Alegre em sua lista de cidades visitadas na sua turnê comemorativa de 50 anos de carreira, que já se tornaram 53. A série de shows também acaba por promover o mais recente álbum de estúdio da cantora, lançado no começo de 2021 com o título The Best is Yet to Come - O Melhor Ainda Está Por Vir. Ao cantar a música-título, Bonnie fez uma analogia com sua volta à estrada após os momentos mais delicados da pandemia, e embalou o público e animado que lotou o auditório em uma noite repleta de sucessos de sua carreira e homenagens a referências pessoais.

Clássicos, novos sucessos e homenagens marcaram apresentação da artista

Intérprete de Total Eclipse of the Heart e It's a Heartache conversou com o público e comemora retorno aos palcos

Intérprete de Total Eclipse of the Heart e It's a Heartache conversou com o público e comemora retorno aos palcos


TÂNIA MEINERZ/JC
Bonnie Tyler fez uma performance carismática e cheia de energia - “Eu vou virar levantadora de peso a esse ponto”, disse, de tanto carregar de lá para cá a base fixa do microfone - e de bastante interação com o público, mesmo com o forte sotaque galês e o vocabulário português estar reduzido a “obrigada”, “muito obrigada” e “água”. Ela abriu o palco com Flat on the Floor, originalmente cantada pela artista country Carrie Underwood, seguida de Hold On, música de seu álbum de 2019 Between the Earth and the Stars, que evidenciava a beleza incomparável de sua voz rouca e gutural, que deixa qualquer música de seu repertório próxima do hard rock. Já a terceira música, It’s a Heartache, estava na ponta da língua de boa parte do público, dando início a um repertório variado. Nas músicas recentes mais conhecidas pelos fãs fervorosos como When the Lights Go Down e Let’s Go Crazy Tonight quanto os clássicos como To Love Somebody dos Bee Gees e Have You Ever Seen The Rain? do Creedence Clearwater Revival mostraram a capacidade da cantora em transitar entre diferentes eras e elevar o material ao mesmo patamar, sustentado apenas por sua voz e interpretação.

E foi no trânsito de eras que, ao introduzir um momento específico no tempo, a própria Bonnie falou todos lá já sentiam o que estava vindo por aí. “Eu vou levar vocês aos anos oitenta agora”, disse Bonnie, que teve como resposta gritos de felicidade com a iminência de ouvir o maior sucesso da trajetória de mais de cinco décadas nos palcos. “Eu trabalhei com os melhores produtores e compositores”, afirmou ela, introduzindo a importância do músico Jim Steinman, que produziu o álbum Faster than the Speed of the Night. Ele compôs o maior sucesso da carreira de Bonnie, o marco do pop rock Total Eclipse of the Heart, e este foi o momento mais aplaudido e entusiasmado da noite pelo público, que cantou com devoção, embora fosse perceptível uma dúvida pairando de quantas vezes se repetiriam cada um dos vinte “turn around” desde o começo da música até a frase final.

Total Eclipse of the Heart foi descrita por Steinman como um tributo ao filme de horror expressionista alemão Nosferatu (F. W. Murnau, 1929), com base em uma “visão de uma mulher deitada no chão olhando para a lua como se fosse um sacrifício” e partindo da percepção do compositor de que vampiros seriam um tema perfeito para óperas e musicais, estilos que acompanharam seu desenvolvimento musical desde criança e são evidentes na sua música mais bem-sucedida, com um título nada sutil de um eclipse total do coração.

Falecido em 2021, Steinman era criticado por jornalistas musicais especializados em rock pelo percebido excesso maximalista e, de acordo com eles, um tanto superficial ao unir música pop, rock e ópera em suas produções. Essa percepção, entretanto, não era tida como negativa por outros profissionais, que comparavam sua ambição sonora com uma mistura entre o compositor alemão Richard Wagner, expoente pioneiro de técnicas de textura sonora e cromatismo em óperas como Tristão e Isolda e O Anel do Nibelungo, e o produtor Phil Spector, idealizador do Wall of Sound (Parede de Som), método de gravação que permitia uma sonoridade densa, orquestrada, reverberada e repleta de camadas, buscando novos caminhos dentro da produção sonora em estúdio. A intersecção entre esses gêneros musicais era deliberada, e motivo de orgulho para o produtor musical. “Eu acho que rock e ópera estão provavelmente mais perto um do outro do que de outras formas musicais. Rock e ópera ambos fazem grandes gestos, ambos são sobre extremos em conteúdo e forma”, disse Steinman em uma oportunidade, em resposta aos críticos. “E cada um tem uma ótima mistura do sublime e do ridículo, heroísmo e humor. Me parece que as barreiras das pessoas para curtir ambos tem mais a ver com sociologia do que com a música e performances em si”.

Steinman afirmava que a maioria das pessoas não gosta de extremos por medo, e que ele tinha interesse em começar pelo extremo e partir dele. “Minhas músicas são hinos, chamados para ação, iniciações feitas a foto, portas abertas escancaradas, altares descobertos”, definiu. “Tudo que eu faço é ditado pelo dramático, pelo fato de que é um personagem cantando em uma situação dramática. Eu tento ser incrivelmente fiel a isso e acredito que isso dá às canções uma urgência real e uma precisão que, em última análise, é bastante poderosa”.

Considerando o contexto teatral e cinematográfico usado por Steinman, é possível entender a conexão de suas obras com o público, e a durabilidade do sucesso. Ao todo, os trabalhos de Steinman com parceiros como Bonnie, Meat Loaf e Céline Dion venderam dezenas de milhões de LPs e singles, além de servirem como trilha sonora de uma geração de adolescentes para além dos anos 70 e 80. Ao colocar a música como a voz de um personagem em pleno ato, mesmo com o contexto pouco explorado, os trabalhos produzidos e escritos por Steinman possibilitam ao ouvinte uma sensação de protagonismo e catarse, seja pelas letras para quem compreende inglês quanto simplesmente apenas pela sonoridade complexa da melodia, que se torna uma linguagem universal.

Tamanha é essa capacidade de conexão que a música é extremamente popular ao redor do mundo, tanto em sua versão original quanto em versões instrumentais, paródias ou adaptações. Em sua passagem no Brasil, Bonnie viu isso de perto: Como convidada no programa Altas Horas, que assumiu por default o espaço ocupado pelos programas da apresentadora Hebe Camargo como o palco natural para artistas estrangeiros anunciando apresentações no País, ela foi introduzida à tradição comum em ritmos originais do Nordeste brasileiro de transformar músicas aclamadas em parte do repertório de artistas de forró e arrocha, assistindo à apresentação de Solange Almeida, ex-vocalista do Aviões do Forró, cantando Eclipse do Meu Coração.

A conexão de Bonnie com o público onde quer que vá também ficou clara durante sua passagem em Porto Alegre, quando, em um hábito bastante específico do público estadual, ela abriu uma bandeira do Rio Grande do Sul que foi jogada ao palco por alguém do público. Bastante aplaudida, ela teve um breve momento de confusão ao ouvir um coro de “ah, Bonnie é gaúcha” se formando. “What does that mean? What does ‘gaúcha’ mean?”, perguntou ela ao público, curiosa para saber o significado da palavra. O público gritava algumas possíveis traduções, e no fim fechando consenso em um “you are from here” - você é daqui, o que ela devolveu com “Fantastic!”. É algo peculiar nosso, mas em uma turnê tão abrangente de uma cantora como ela, interações peculiares acontecem a cada noite, a cada palco, com o mesmo significado de acolhimento.

Bonnie abriu bandeira do Rio Grande do Sul e foi chamada de gaúcha

Bonnie abriu bandeira do Rio Grande do Sul e foi chamada de gaúcha


TÂNIA MEINERZ/JC
Na sequência, a cantora anunciou a próxima música com um pequeno prólogo sobre um ídolo pessoal dela: “eu amo Tina Turner, sempre amei. Eu gravei essa música dois anos antes de Tina gravar. Hoje, vocês vão ouvir a versão original, a minha versão, de Simply The Best”. A presença desta música no repertório surpreendeu o público positivamente, que cantou entusiasmado em coro. Tina é uma influência fundamental e perceptível na construção de Bonnie como intérprete. Ela já afirmou em entrevista à BBC que River Deep – Mountain High, gravação épica de Tina & Ike Turner e feita no Wall of Sound de Phil Spector, é sua música favorita, e essa influência em especial evidencia a naturalidade do desenvolvimento de sua parceria com Jim Steinman: quando há uma voz incomparável, uma produção bombástica de qualidade e uma história a se contar, o sucesso tende a ser inevitável.

Simply The Best encerrou a parte principal do show, com uma despedida abrupta que deixava óbvio que o bis estava por vir. Em questão de um minuto, Bonnie, que nem chegou a sair do palco (foi só para um canto), voltou ao microfone para chamar o público de lindo e apresentar sua comitiva. “Você só é tão bom quanto o time que você tem”, afirmou ela, citando nome a nome os integrantes de sua banda, que fizeram um trabalho excepcional durante toda a noite. Além disso, o público pôde conhecer o marido de Bonnie, o ex-judoca olímpico Robert Sullivan, com quem ela destaca ser casada há 49 anos, informação que só não foi tão aplaudida quanto o beijo que ambos dividiram no palco.

O bis de duas músicas começou com uma pergunta. “Vocês gostam de blues? Porque vocês vão ganhar”, disse Bonnie, ao introduzir Turtle Blues, de Janis Joplin, uma escolha natural a ela. Janis e Tina são suas duas maiores referências, que também já citou outras grandes vozes como inspirações pessoais, como Aretha Franklin e Dusty Springfield, além de elogiar artistas que vieram depois dela e certamente influenciadas mesmo que indiretamente, como Anastacia e Duffy, ambas com potências, timbres e entregas semelhantes às de Bonnie. Ela também é admiradora da inglesa Adele, com quem já manifestou interesse em cantar junto. Fiel às referências que a acompanham desde a juventude enquanto apoia novos nomes que vieram depois dela, ela vai carimbando seu status de atemporal, ou eterna, ou qualquer outro adjetivo que defina alguém que segue vivendo a própria vida tratando o passar do tempo como natural e adaptável.

O show encerrou com o clássico Holding Out for a Hero, música lançada em 1984 como parte da trilha sonora do filme Footloose, e que nunca sai de moda pela presença contínua na cultura atual, como a interpretação pela Fada Madrinha no filme Shrek 2 ou em performances em karaokês, festas e listas de reprodução das rádios Continental e Antena 1. A música, que já era um rock a plenos pulmões na época do lançamento, assume um aspecto quase punk nessa performance de Bonnie. A sua voz de rock, que inspira homens adultos a fumarem cinco carteiras de cigarro, só se torna ainda mais impressionante.

Noite deixa lembrança especial para admiradores de longa data

Público foi bastante participativo e cantou boa parte do repertório

Público foi bastante participativo e cantou boa parte do repertório


TÂNIA MEINERZ/JC
Holding Out for a Hero foi o fim apropriado de um evento de celebração de lembranças antigas e criação de novas memórias, especialmente para o público que veio de diferentes lugares do Estado. Natural de Santa Maria, Rafael Cruz veio acompanhado de três amigas de ônibus para assistir a esse acontecimento de pertinho, os quatro uniformizados com camisetas com o rosto da cantora estampado. Aos 30 anos, Rafael é fã de Bonnie desde criança, quando ouviu Total Eclipse of the Heart pela primeira vez. Ele havia comprado o ingresso no dia 20 de janeiro de 2020 - “para a segunda fileira, porque não tinha a primeira mais”, destaca - e, depois da felicidade em poder ver uma de suas artistas favoritas pela primeira vez e nessa fase da carreira, teve que lidar com a frustração da felicidade possivelmente passageira e apreensão de não saber se o show sequer ocorreria. “Eu ficava acompanhando o tempo todo pelo aplicativo (de compra de ingresso)”, disse Rafael. Agora, 2 anos e 10 meses depois da compra, ele definiu a noite como “a realização de um sonho”, que compensou a espera. “Incrível, sem palavras. Foi o melhor show de todos os shows que já vi”.

Sonia (ao centro) e amigos vieram de Arvorezinha para ver ícone da adolescência no palco

Sonia (ao centro) e amigos vieram de Arvorezinha para ver ícone da adolescência no palco


Carlos Villela/JC
Vinda de uma distância um pouco mais curta mas de uma cidade bem menor, Sonia Baldissera estava entre cinco pessoas que rumaram de Arvorezinha, no Vale do Taquari, para ver a estreia da Bonnie nos palcos gaúchos. Fã desde a adolescência, assim como os amigos, todos vestidos com uma camiseta preta escrito “Bonnie Tyler 18/11 - Eu fui”, Sonia teve Holding Out for a Hero como “porta de entrada” para a artista. “Nós compramos os ingressos agora, mas queríamos vir desde antes”, disse. Questionada se apreciou a apresentação, sua resposta saiu entusiasmada e enfática: “Sim, sim, sim, sim”, notando como, apesar de ter um “pique” mais comedido do que no passado, acredita que “a voz é a mesma”.

A percepção da amiga Divanei Mussio, que também acompanha o trabalho de Bonnie de perto há muitos anos, é um pouco diferente. “Eu já acho que a voz dela mudou com o passar do tempo, o tom de voz mudou de quando ela tinha uns 25, 30 anos”, diz. Segundo ela, há uma mudança na potência, que não é igual à do passado. Entretanto, ela constata isso apenas como um fato, algo que não tem motivo para interferir em nada na opinião sobre o espetáculo. “Sou fã de uma vida, e ela continua uma deusa”, afirma, sorrindo. “Uma diva, como sempre”