Não é incomum, levando em conta a longa e cansativa estrada para quem faz música autoral no Brasil, que o tempo vá trazendo um certo abrandamento, por assim dizer. Esse não é, certamente, o caso do Ira! - que, após quatro décadas de estrada, parece determinado a mostrar que a chama roqueira arde cada vez mais forte no seu espírito, sem nenhum sinal de que vá se apagar. Parada obrigatória nessa celebração do rock e da vida, Porto Alegre recebe o show Ira! 40 Anos neste sábado, às 21h, no Auditório Araújo Vianna (avenida Osvaldo Aranha, 685). Ingressos, a partir de R$ 60,00, seguem à venda no site Uhuu.
Quem comparecer ao show pode esperar uma performance energética, vinda de uma banda que compreende o que há de extraordinário na própria existência. Novamente unidos depois de uma batalha judicial que chegou a encerrar a carreira da banda no final dos anos 2000, Nasi (vocais) e Edgard Scandurra (guitarras) contam com a presença de Johnny Boy (baixo) e Evaristo de Pádua (batera) para revisitar uma série de clássicos - Envelheço na cidade, Tarde vazia, Dias de luta, Vida passageira e Flores em você são apenas alguns exemplos - ao lado de temas do álbum mais recente, Ira (2020) e algumas surpresas.
"Uma coisa que a gente traz lá de trás, do começo da nossa trajetória, e que segue com a gente até hoje é a nossa conexão com o underground, com a música alternativa e o experimentalismo", afirma Scandurra, em entrevista ao Jornal do Comércio. "Acho que isso faz com que a gente vá além de uma banda de pop, por exemplo. Não gosto quando chamam o Ira! de uma banda pop, fico até um pouco chateado. Claro que o pop tem sua riqueza, mas sinto que é uma categoria dentro da qual a gente não encaixa. Mesmo com todo o sucesso que alcançamos, somos uma banda de rock acima de tudo", acentua.
A estrada do rock, de qualquer modo, é um tanto pedregosa e sujeita a instabilidades. A maior de todas a banda viveu a partir de 2007, quando Nasi e Scandurra romperam relações em meio a uma batalha judicial e demonstrações de hostilidade pública. Anos depois, veio a reconciliação - ainda que o evento traumático tenha deixado marcas e aprendizados.
"Uma lição que ficou, para mim, é que as coisas nunca podem ser resolvidas, entre adultos, de cabeça quente, através da agressão e do ódio", pondera Scandurra. "Faltou um pouco de cabeça fria, nem digo para que a banda não acabasse, mas para que não acabasse do jeito que acabou. Hoje, acho que a gente poderia ter parado e tirado umas férias, mas aí teve um certo oportunismo nosso de querer encaixar o sucesso do Acústico (2004) com o próximo disco autoral (Invisível DJ, de 2007). Acho que foi um grande erro. Serve de lição para sempre procurarmos agir como homens adultos, pacíficos e inteligentes, sem colocar a emoção na frente."
Outro percalço a ser superado pelo Ira! foi a pandemia, que surgiu em um momento no qual o grupo se preparava para divulgar seu disco quase-homônimo. "Infelizmente veio a pandemia, não por causa do disco, mas do País e do planeta", diz o guitarrista. "Faltou o contato com o público, faltou turnê, a divulgação com contato físico entre público e artista. Isso fez com que o disco, infelizmente, tivesse uma história mais curta. Incorporamos algumas músicas (no atual show), mas o momento agora é outro, a gente está mais nesse momento de celebrar esses 40 anos de história", acentua.
Uma celebração de quem sabe o que passou e, junto com isso, reconhece onde está e para onde deseja ir. E que ganha contornos ainda mais intensos em um momento no qual a cultura é vista com maus olhos por tanta gente no Brasil. "A gente tem que escutar essa lengalenga de Lei Rouanet, de mamar nas tetas do governo, e é muito triste ouvir isso, porque o caminho de uma banda é degrau por degrau. A gente toca para 10 pessoas, aí toca para 100, cresce, grava um disco, começa a viajar, cai no esquecimento e tem que crescer de novo. Os músicos mudam, há contratos que não dão certo. Tudo isso é um trabalho muito intenso, e é muita sacanagem ver alguém dizendo 'acabou a mamata, agora vão ter que trabalhar'. Meu amigo, eu trabalho desde os 15 anos de idade, estou com 60 anos, então, é muito chato ouvir isso aí."
Mas quem tem história passa por cima de tudo, como o próprio Scandurra frisa logo em seguida. "A nossa história é muito forte, é muito difícil que seja derrubada por um governo fascista que apareça, ou por uma parcela da sociedade que torça o nariz para alguma letra e queira algo mais chapa branca. Nós e outros artistas temos força para superar essa ignorância, seguimos em frente porque temos história, temos lastro, temos repertório", comemora.
Uma história que tem tudo a ver com Porto Alegre, e que encontra na Capital um espaço sob medida para a celebração. "Porto Alegre é um lugar muito especial para o Ira!, até pela tradição roqueira que essa cidade tem. As rádios de rock daí às vezes tocavam nossas músicas em versão acústica, coisas que a gente gravava dentro da rádio, violão e voz, e emplacava nas rádios. Tocar aí tem sempre uma sensação boa de você estar fazendo história. Não é apenas uma data que você está preenchendo, tocar em Porto Alegre é marcar um momento histórico na cabeça das pessoas e na nossa mente também."