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Cultura

- Publicada em 14 de Fevereiro de 2021 às 18:47

O testemunho de uma favelada que morreu há 44 anos

Com cadernos sujos que catava no lixo e talento nato para a escrita, Carolina Maria de Jesus entrou para o cânone da literatura brasileira

Com cadernos sujos que catava no lixo e talento nato para a escrita, Carolina Maria de Jesus entrou para o cânone da literatura brasileira


/ARQUIVO/MIS/JC
Roberta Requia
Uma escritora improvável, Carolina Maria de Jesus, cuja morte completou 44 anos neste sábado (13), exponenciou a voz, a vida e o grito contido de milhares de almas faveladas no Brasil da década de 1950.
Uma escritora improvável, Carolina Maria de Jesus, cuja morte completou 44 anos neste sábado (13), exponenciou a voz, a vida e o grito contido de milhares de almas faveladas no Brasil da década de 1950.
Negra, favelada e recicladora de lixo, ressignificou a literatura de testemunho com sua obra Quarto de despejo - Diário de uma favelada, lançada pela primeira vez em 1960. Em formato de diário, a escritora retratou seu cotidiano em páginas escritas a mão: a realidade na favela do Canindé, comunidade extinta de São Paulo.
Ao longo de sua obra conhecemos as brigas entre os vizinhos, o descaso das autoridades para com os favelados, as dificuldades de uma mãe solteira que cria sozinha três filhos e o mais tocante de sua obra, a fome e a incerteza do alimento na mesa dia após dia.
Nascida na cidade de Sacramento em Minas Gerais, Carolina era filha ilegítima de um homem casado, o que ocasionou anos de maus tratos durante sua infância. Aos sete anos, passou a frequentar a escola, paga pela esposa de um fazendeiro da região, onde estudou apenas o suficiente para aprender a ler e escrever.
Em 1937, após a morte de sua mãe, migrou para São Paulo a fim de encontrar a tão sonhada oportunidade para uma vida melhor. Aos 33 anos, desempregada e grávida de seu primeiro filho, João José, instalou-se na favela do Canindé e construiu a própria casa usando madeiras e pedaços de metal que encontrava na rua. Foi lá que Carolina passou a testemunhar o crescimento da megalópole paulistana e o surgimento das primeiras favelas da cidade. Em 1949 e em 1953, nasceram, respectivamente, seus outros dois filhos: José Carlos e Vera Eunice. Como trabalhava como catadora, em 1955, passou a registrar seus diários em cadernos que encontrava no lixo.
Em sua escrita, Carolina considerava a favela o quarto de despejo da cidade, enquanto o Centro e os bairros, representavam os jardins: "Quando querem se livrar dos papéis e das latas velhas, mandam para o lixão; quando querem se livrar das pessoas que incomodam, mandam para a favela, o quarto de despejo da humanidade", relata a escritora em um trecho do livro. A obra escancara uma realidade de extrema pobreza, desigualdades de gênero e raça, com a autora relatando em primeira pessoa os problemas enfrentados pelos favelados.
Os escritos de Carolina foram descobertos em 1958 por um jornalista da atual Folha de São Paulo, que na época dividia-se em Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. Audálio Dantas planejava passar uma semana frequentando o Canindé para realizar uma matéria sobre aqueles que levavam a vida às margens do Rio Tietê. Ao presenciar uma confusão entre crianças e adultos no local, o repórter ouviu a voz de Carolina, que dizia que iria registrar a situação em seu livro. Três dias após começar a excursão ao Canindé, Audálio voltou até a redação da Folha com os cadernos de Carolina em mãos. A reportagem, com trechos dos mais de 20 cadernos, foi publicada na edição de 9 de maio de 1958, na Folha da Noite, com o título O drama da favela escrito por uma favelada.
A repercussão foi bombástica. A mulher que dependia do lixo para sobreviver e se alimentar foi destaque na mídia internacional nas revistas Time e Life e no jornal francês Le Monde. Audálio Dantas compilou os diários os transformando no livro Quarto de despejo - Diário de uma favelada, que foi publicado em agosto de 1960. Os 10 mil exemplares da primeira edição foram vendidos em uma semana.
Em 1960, a obra ganhou uma adaptação no teatro dirigida por Amir Haddad e com texto da escritora gaúcha Edy Lima. Ruth de Souza interpretou Carolina na peça encenada para a alta classe social de São Paulo no Teatro Bela Vista, que não existe mais.
O acontecimento foi considerado fundamental para a abertura de espaço para intérpretes negros nas artes cênicas, televisão e cinema da época. Mais de 20 atores negros compuseram o elenco. Ruth chegou a visitar a favela do Canindé para compor sua personagem, acompanhada de Carolina e Audálio Dantas.
Em comemoração aos 60 anos do lançamento de Quarto de despejo, em 2020, a editora Ática lançou Quarto de despejo - Teatro, um livro com a versão da peça escrita por Edy Lima em 1960, nunca antes publicada: "O texto é o mesmo porque a história da Carolina não tem mudanças a se fazer, porque a história que ela conta é própria da época e de uma São Paulo. Então, não podemos ir mudando conforme a época, temos que ser fiéis ao original", comenta Edy, que é autora de mais de 50 peças teatrais. Para ela, a obra de Carolina de Jesus mantém-se única por retratar um espaço e um período muito específicos de São Paulo, sem abrir espaços para adaptações aos novos tempos ou a novas mudanças.
"A obra de arte é sempre a mesma. Qual é a diferença que existe no Dom Quixote que o Miguel de Cervantes escreveu e o que a gente lê agora? Nenhuma. E a Carolina é muito boa escritora. O que tentei, dentro de uma dificuldade bastante grande, foi transformar um diário, que não é uma obra de ficção, em uma peça de teatro. E uma peça de teatro é sempre uma ficção mesmo quando ela é histórica. Neste caso, eu mantive a fidelidade à Carolina e ao mesmo tempo a fidelidade ao teatro", exemplifica Edy em entrevista ao Jornal do Comércio.
Ao lado da escritora, Amir Haddad também assina o prefácio o livro. Ele conta no texto que, após as apresentações na época, mulheres da alta sociedade que o assistiam iam até os camarins oferecer cargos de empregada doméstica para as atrizes.
Uma nova edição de Quarto de despejo também será lançada pela Ática. A publicação contém notas informativas e fotos dos próprios manuscritos de Carolina e custa R$ 49,90. Ambos os livros contam com capa assinada pelo artista plástico No Martins, que em seus trabalhos costuma abordar questões como racismo, violência policial e encarceramento em massa. Ainda sem data de lançamento, os dois livros estarão à venda pelo site da Editora Ática.
Carolina de Jesus continua atual e necessária mais de 50 anos após sua descoberta. Para Edy Lima, "a verdade de Quarto de despejo é sempre a verdade de Quarto de despejo, não é uma atualização das favelas. As favelas mudaram muito de lá para cá, não que melhoraram, mas mudaram. Mas acima de tudo, a obra e o trabalho da Carolina permanecem".
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