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MEMÓRIA

- Publicada em 25 de Julho de 2020 às 08:14

Henrique Mann disponibiliza na rede capítulos da música gaúcha do século XX

Músico, compositor, produtor e escritor lança oficialmente em seu site 30 volumes de 'Som do Sul'

Músico, compositor, produtor e escritor lança oficialmente em seu site 30 volumes de 'Som do Sul'


LEANDRA VARGAS/DIVULGAÇÃO/JC
O músico, compositor, produtor cultural e escritor Henrique Mann dá um passo importante para a história da música do Estado: ele libera oficialmente nesta segunda-feira (27) na internet a íntegra dos 30 volumes da enciclopédia Som do Sul. Os fascículos sobre a história dos músicos gaúchos do século XX estão disponíveis para download gratuito em seu site: www.henriquemann.com.
O músico, compositor, produtor cultural e escritor Henrique Mann dá um passo importante para a história da música do Estado: ele libera oficialmente nesta segunda-feira (27) na internet a íntegra dos 30 volumes da enciclopédia Som do Sul. Os fascículos sobre a história dos músicos gaúchos do século XX estão disponíveis para download gratuito em seu site: www.henriquemann.com.
"É algo de interesse coletivo", informa o autor. Participaram muitos jornalistas (Juarez Fonseca, Mônica Kanitz, Gilmar Eitelwein, Roger Lerina, entre outros), dezenas de fotógrafos e historiadores. "Foi um mutirão que envolveu mais de 240 pessoas", comenta Mann sobre a obra publicada em maio de 2002, com incentivo da LIC gaúcha e patrocínio da CEEE. Até hoje, é a única ganhar tanto o Troféu Açorianos de Música quanto o de Literatura. A coleção traz informações sobre a vida e obra de músicos, poetas e produtores gaúchos.
Mann conta que, na década de 1980, começou a pesquisar e entrevistar músicos da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Carlos Lyra, Lulu Santos, Oswaldo Montenegro, Chico Buarque, Belchior, Alceu Valença, entre outros. O material tinha como destino seu livro A MPB em debate, lançado em 1991). "Era uma época em a MPB entrava em declínio e começava a ascensão do rock brasileiro e logo viria uma série de ondas como a sertaneja, axé-music Buscava entender o fenômeno, porque me atingia diretamente, eu tocava MPB em casas noturnas e shows. Para definir os músicos do Rio Grande do Sul, que eram da mesma linhagem, usava-se a expressão MPG (Música Popular Gaúcha)."
O escritor relata que a música regional também passava por um processo semelhante: "Começava uma espécie de 'declínio' daquela música regional mais sofisticada, a que se chamava 'nativismo', ligada aos festivais como o Califórnia da Canção e entrava em cena vigorosamente uma música de 'bailanta'. Começava o predomínio do vanerão".
Mann percebia, à época, que os fenômenos eram correlatos e estavam ligados às transformações do País, da sociedade brasileira como um todo. "Sempre que eu procurava informações sobre os músicos do Rio Grande do Sul esbarrava na falta quase absoluta de material de pesquisa. Raros livros numa época em que a internet não era essa potência de hoje. O Google surgiu em 1998, por exemplo. Era mais fácil encontrar material sobre os artistas do Centro do País do que dos do Sul, que estavam aqui ao meu lado. Tinha que entrar em arquivos de jornais, museus ou perguntar para os próprios ou herdeiros, e isso nem sempre era fácil ou possível." Foi quando ele decidiu que era necessário construir um profundo material de pesquisa. Por volta de 1985, já possuía um volume considerável de material, mas começou a juntar tudo o que era possível e acelerar o processo a partir de 1995. "No ano 2000, já havia acumulado uma quantidade suficiente para apresentar um projeto para a Lei de Incentivo à Cultura e a minha ideia era distribuir para as bibliotecas e para as escolas, porque se tornaria objeto de estudo justamente onde era mais necessário. Consegui o patrocínio e trabalhei dois anos exclusivamente para concluir a coleção", recorda.
Segundo Mann, a publicação é chamada de coleção por uma razão prática. Havia um conselho editorial, liderado por Mônica Kanitz, formado por jornalistas e professores e pessoal da área da diagramação. "Debatíamos o formato, mas ninguém imaginava que ela ficaria assim tão grande e pesada (cerca de quatro quilos). O primeiro protótipo resultou em um livro do tamanho de um dicionário Houaiss." A tecnologia para fazer a coluna de um livro deste tamanho é muito cara. As professoras consultadas também advertiam que um livro assim passando de mão em mão numa sala de aula com 30 alunos teria vida curta. "Isso foi uma senha para mim: 30 alunos. Claro, 30 volumes diferentes! O artista gráfico Vitor Hugo Santos (Turuga) comprou a ideia comigo. Imaginamos uma caixa que mantivesse os volumes unidos e 'em pé'. Apelidamos a enciclopédia de 'coleção'. E foi mesmo um trabalho gigantesco", conclui.
O autor lembra que alguns artistas foram tão generosos e confiantes que cederam materiais exclusivos: "O falecido Leonardo subiu em uma cadeira e tirou da parede a única foto que tinha ainda criança ao colo da mãe. Foi emocionante. Nós tratamos e restauramos aquela foto e devolvemos a ele a original e cópias tratadas. Outras coisas que, só de lembrar, já mareia os olhos: a família de Paulo Ruschel confiou-me a partitura original de Os homens de preto. Juarez Fonseca cedeu-me fitas com entrevistas que ele havia feito e não publicado, material inédito".
Gilmar Eitelwein também passou a ele tudo que havia escrito sobre a história do rock gaúcho. "Nem posso dizer que a coleção é minha, porque ela é 'nossa', legitimamente. As capas (com fotos de Nilton Santolin) são verdadeiras obras de arte, as contracapas são ilustrações do Santiago, aquilo ali tudo é patrimônio do povo brasileiro, acima de qualquer outra coisa", avalia o produtor que - mesmo morando há anos em Portugal - agora disponibiliza tudo gratuitamente na rede, sabendo da preciosidade que ele e seus parceiros elaboraram para a posteridade nacional.
Ele reconhece que a motivação foi pela pouca disponibilidade de material sobre o tema, mas é característica natural do seu trabalho com música sempre ter viés histórico. "A única exceção foi o meu 1º álbum, o LP Quintanares & Cantares (1987), em parceria com o poeta Mario Quintana. O resto, todos os meus discos e livros, sempre são feitos com base em pesquisa de história. É o meu jeito de fazer as coisas. E era justamente por isso que me incomodava tanto aquela falta de fontes, aquelas lacunas todas que me levavam a passar horas a fio em arquivos de jornais e museus Eu precisava pôr fim naquilo."
Antes da conclusão, no entanto, percebeu que a obra, mesmo gigantesca, por maior que fosse, jamais seria completa ou perfeita. "Seria até arrogância imaginar que tudo estivesse ali de forma definitiva. Depois de mim, muita gente viria a escalar aqueles degraus e acrescentar fatos novos, recuperar os que deixei escapar." Sem economia de esforços, ficou em paz consigo mesmo, e com aquela obra tão assustadoramente grande, que agora está ao alcance de todos.

"O mais comovente nisso tudo são as declarações dos próprios artistas"

Enciclopédia foi publicada originalmente em maio de 2002, com incentivo da LIC gaúcha e patrocínio da CEEE

Enciclopédia foi publicada originalmente em maio de 2002, com incentivo da LIC gaúcha e patrocínio da CEEE


NILTON SANTOLIN/DIVULGAÇÃO/JC
Henrique Mann iniciou carreira musical nos festivais estudantis da década de 1970 e tornou-se profissional de casas noturnas no início dos anos 1980. Depois de A MPB em debate em 1990, lançou o livro Retratos da vida boêmia em 1995. Também participou ativamente na produção de vários festivais, shows e discos de diversos artistas.
Em 2005, assumiu a Coordenação de Música da prefeitura de Porto Alegre, empreendendo inúmeros projetos, com destaque para os shows Nós da Noite, Sons da Cidade e Encontrabanda, do qual resultou o CD da Banda Municipal de Porto Alegre. Foi coordenador até 2008, quando indicou o radialista, músico e produtor Jorge André Brittes para o cargo e partiu para a administração de seus projetos pessoais. 
JC - Panorama: O reconhecimento ao projeto veio com dois troféus Açorianos, isso fica na história. Mas, na época, a repercussão na cena musical local foi grande, que retornos recebeste?
Henrique Mann - Bem, Som do Sul é a única obra a receber os troféus tanto em Música, quanto em Literatura em toda a história da premiação, isso já é algo extraordinário. Mas é impressionante que passados quase 20 anos ainda seja enorme o número de pessoas que me consultam e pedem materiais para TCCs, dissertações de mestrado, teses de doutorado… radialistas que utilizam capítulos como se fosse um roteiro pronto para um programa, principalmente na Semana Farroupilha. Mas o que é mais comovente nisso tudo são as declarações dos próprios artistas. É difícil para mim ver aquelas coisas sem ficar com os olhos mareados…. Nem sei como descrever, um autor precisa ter o coração forte para ver isso.
Depoimentos de músicos como Jerônimo Jardim estão disponíveis no canal do YouTube de Henrique Mann.
Panorama - Hoje, vives em Portugal. Podes contar um pouquinho da tua ligação com o "som do Sul" atualmente?  Os artistas daqui ainda marcam presença nos teus ouvidos do outro lado do oceano, no Antigo Mundo?
Mann - Ah, isso será sempre… estou sempre a escutar o pessoal daí, mantenho-me informado, até porque sou correspondente da Rádio New Ways e costuma enviar comentários em blocos de 15 minutos onde falo de tudo, política, situação internacional, pautas diversas, entre elas divulgo as novidades que os amigos me enviam, como recentemente o Egisto e o James Liberato enviaram e eu divulgo com o maior carinho, porque sei da preciosidade e da dificuldade que é viver de música no Sul do Brasil.
Panorama - Ainda há muito interesse dos europeus pela MPB? E, no continente, quais são os gaúchos mais conhecidos?
Mann - Sim, claro, a música brasileira de todos os tipos é sempre ouvida e muito respeitada, desde a bossa nova e o samba, até sertanejos e a Anita… aqui em Portugal os músicos gaúchos mais conhecidos são a Adriana Calcanhotto, o Yamandu e o Papas da Língua. Musicalmente prosseguimos fortes. O que mudou um pouco é o modo como somos vistos. Até uns anos atrás brasileiros eram considerados pessoas simpáticas, solidárias e divertidas, hoje a ideia que se tem é que são ignorantes e fascistas, ninguém consegue entender como o povo brasileiro elegeu Bolsonaro, que aqui é considerado uma figura execrável. Então há uma certa desconfiança neste sentido… e até alguma hostilidade. As pessoas primeiro tentam identificar se somos bolsonaristas… quando percebem que não, aí relaxam. Na visão dos portugueses, um bolsonarista é alguém muito ignorante e simplório ou é uma pessoa perigosa e incapaz de empatia. Nem o pessoal da direita gosta dele, apenas os nazis.
Panorama - Como surgiu a ideia de disponibilizar todo o conteúdo gratuitamente na internet agora? Achas que atualmente a história da música do RS está deixada de lado, são poucas as iniciativas de preservação e difusão? Como avalias os espaços de mídia recentes para divulgar essa obra?
Mann - A enciclopédia (que apelidamos de “coleção”) nunca saiu de cena, porque é uma fonte muito abrangente de consulta. Era difícil reeditá-la devido ao seu tamanho, ela pesa quatro quilos. Então, ficava sob constante pressão de pessoas que precisavam de informações ali contidas mas não tinham acesso. Com a situação caótica da cultura atual no Brasil no sentido econômico eu vi que não teria mais nenhuma possibilidade de reedição e seria injusto que esse patrimônio histórico ficasse só comigo. Por outro lado, a internet possibilita que ela continue a evoluir. Ela vai tornar-se uma “mini-Wikipédia” da música do RS. Naqueles espaços grifados como “anexos” poderão ser inseridas atualizações aos fascículos. E poderão surgir novos… A série parou no volume 30, mas poderão aparecer o 31, 32, 33… Basta que ele seja escrito por alguém… Você mesma, Carol, pode escrever e me enviar, eu publico lá. Acho que assim a enciclopédia terá muito mais utilidade e viverá muito tempo…
Panorama - Alheio ao contexto de pandemia, ainda fazes música em Portugal? Ou as aulas são a atividade principal?
Mann - Prossigo fazendo o que sempre fiz… Tenho um disco em andamento a ser gravado com músicos portugueses e brasileiros. A parte brasileira eu já trouxe gravada daí quando vim, agora estou trabalhando na parte “portuguesa”. Claro que tivemos que interromper isso com a pandemia, mas logo retomaremos. Tenho também outros dois livros por concluir e uma peça de teatro. Tem ainda minha atividade ligada às Artes Marciais, sou Mestre em Kickboxing, professor de Boxe e MMA. Estava por investir nessa área também. Ainda bem que não o fiz, porque com a pandemia teria levado um enorme prejuízo. E acho que este é um setor que ainda sofrerá muito, talvez mais até que o da música.
Panorama - Como Coordenador de Música de POA, foste criador de um importante projeto que funcionava como janela para os artistas locais, o Sons da Cidade. A distância, com teu olhar de produtor, acompanhas pela internet a produção dos talentos da nossa nova geração? Tem algum caso que gostaria de citar como exitoso, explorando as possibilidades da tecnologia para o artista independente, já que o cenário não tem conta mais com quase nenhum apoio direto do poder público, nos últimos 5 anos, principalmente?
Mann - Quando fui Coordenador havia o amparo do poder público à Cultura. O Brasil parece ter desaprendido isso. A campanha massiva de imbecilização através da internet e do WhatsApp levaram as pessoas a entender o incentivo fiscal, a Lei Rouanet ou a LIC como uma espécie de favor à classe artística. Estas pessoas não são capazes de enxergar o que é “Economia da Cultura”. Quando um artista executa um evento toda uma cadeia produtiva é acionada, desde empresas de som e luz (o que vai refletir também nas lojas, no comércio e na indústria destes equipamentos e instrumentos musicais ou cinematográficos, por exemplo), passando por gente da segurança, transportes consumo de bebidas, alimentos, chegando lá na ponta, onde o mais modesto pipoqueiro ou vendedor de latinhas de cerveja obtém seu sustento. A “guerra cultural” promovida pelos setores da extrema direita destruíram coisas importantes que o Brasil levou mais de um século para construir. Está em moda ser ignorante e a intectualidade e a cultura são vistas como “inimigas” por estas pessoas que estão no poder e, mais ainda, até por aquelas que não estão no poder, mas aderem a esta idiotice para terem blogs e canais monetizados que lhes rendam dinheiro. E para isso quanto maior a estupidez, quanto mais chocante a ignorância maior o número de “likes”… maior a renda do canal ou do blog.