Para muitos artistas, um álbum vai além da simples função de vender cópias e servir de justificativa para shows, servindo para pontuar momentos chave de uma trajetória instrumental ou criativa. No caso de James Liberato, as sete faixas de Manacô são a fotografia de um momento, em mais de um sentido. Na fronteira entre o jazz característico de sua obra e as sonoridades brasileiras e sul-americanas, o músico captura em seu quarto CD solo muito do que criou durante os 15 anos desde Sotaque Brasil (2005), seu disco anterior - ao mesmo tempo em que dá a essas canções o sabor fugidio do improviso, em arranjos que se tornam tão marcantes quanto irrepetíveis.
"Se eu fosse gravar (esse álbum) de novo agora, não seria o mesmo resultado. Poderia ser melhor ou pior, mas igual não seria. É assim que ele existe e nunca mais vai se repetir", diz o músico, por telefone, ao Jornal do Comércio.
Manacô é uma expressão da tribo dos Kulina, da Amazônia, e se refere à maneira como se relacionam e se apoiam em comunidade, em uma lógica baseada no que se oferece, ao invés de aquilo que se possui. Uma forma de solidariedade, enfim. E solidariedade é, de fato, um conceito central no CD. O trabalho, que levou cerca de um ano para ficar pronto, conta com um extenso time de convidados, todos se revezando para gravações no estúdio caseiro de Liberato. Mesmo a arte gráfica é um negócio em família, tendo sido produzida por Miguel Liberato, filho do músico.
"Essa coisa de não gravar há muito tempo estava me incomodando, produzi vários discos de outras pessoas e o meu foi ficando na gaveta. E eu nem sabia como ia fazer um disco, não tinha dinheiro. Mas as pessoas começaram a me estimular, a vestir a camiseta (do projeto). Eu dizia 'mas eu não tenho grana' e elas respondiam 'não tem problema'. Foi a partir daí que a coisa começou a crescer", relembra.
Participam de Manacô músicos como Dudu Penz (baixo), Guilherme Goulart (acordeon), Luís Henrique New (teclados) e Luís Barcelos (bandolim) - todos com a oportunidade de improvisar seus próprios solos, o que deu um sentimento de fluidez e leveza aos arranjos. "Quis variar os improvisadores, ao invés de dizer 'o disco é meu' e improvisar em todas as músicas. Não é um disco de guitarrista, no qual o cara sola o tempo todo: é um disco de música. Minha preocupação é fazer música boa de ouvir", reforça.
Duas das faixas (Sete chaves e Espelho d'água) já haviam aparecido no CD Trezegraus (2009), único disco do projeto homônimo, no qual Liberato dividia as ações com Thiago Colombo, Ana Paula Freire e Luiz Jakka. As demais eram, até aqui, inéditas. Quase totalmente instrumental (a exceção é Amor e música, com voz de Anacruz Bizarro), Manacô é pura música brasileira - o que reflete bem o movimento seguido por James Liberato na última década e meia.
"Eu sempre fui visto como músico de jazz, e a coisa que eu menos toco hoje em dia é jazz. Outro dia fui tocar jazz com um amigo e eu nem lembrava direito das músicas", diz ele, rindo. "Meus outros CDs eram meio fusion, sempre tinha música brasileira, mas dali a pouco aparecia uma distorção no meio. Não tenho nada contra (atualmente), é claro, mas acho que o meu momento é de buscar sonoridades brasileiras, tocar e gravar música brasileira."
O que não quer dizer, de forma alguma, que o espírito jazzístico não esteja lá. Ao contrário. "O jazz está junto", assegura. "O conceito de jazz é pegar a música e brincar com ela. E o choro, por exemplo, tem uma linguagem de improvisação que é totalmente jazzística. Hoje a gente vê (o bandolinista brasileiro) Hamilton de Holanda rodando o mundo tocando um som que eu nem chamaria de choro, é música instrumental brasileira. E aí, isso é jazz ou não é? Para mim, é jazz", frisa.
A divulgação de Manacô acabou sendo bastante prejudicada pela indesejada chegada do novo coronavírus ao Estado. Com uma agenda de shows acertada para os próximos meses, o músico está destinando suas seis cordas às aulas por videoconferência, enquanto vai tratando de colocar o disco nas plataformas digitais. "Isso tudo puxou o nosso tapete", admite. "Agora o que a gente tem que fazer é sobreviver, manter a casa em pé. A ideia é retomar forte a agenda de shows quando tudo isso passar, possivelmente já no segundo semestre."