Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

reportagem cultural

- Publicada em 13 de Julho de 2018 às 01:00

Literatura produzida por negros, para todos

Da favela para o mundo: Carolina de Jesus, a precursora da literatura negra moderna

Da favela para o mundo: Carolina de Jesus, a precursora da literatura negra moderna


IMS/DIVULGAÇÃO/JC
A crônica Inimigos, escrita por Luis Fernando Verissimo na década de 1990, não tem nenhuma indicação da cor da pele dos personagens. Mas as chances de você ter imaginado uma Maria Tereza e um Norberto brancos são grandes. Isso porque a literatura "universal" é produzida e escrita pelo mesmo grupo social: homens, brancos, com curso superior.
A crônica Inimigos, escrita por Luis Fernando Verissimo na década de 1990, não tem nenhuma indicação da cor da pele dos personagens. Mas as chances de você ter imaginado uma Maria Tereza e um Norberto brancos são grandes. Isso porque a literatura "universal" é produzida e escrita pelo mesmo grupo social: homens, brancos, com curso superior.
O grupo de estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, capitaneado pela doutora em Teoria Literária Regina Dalcastagnè, concluiu que, entre 1990 e 2004, 93,9% dos autores publicados no País por três das principais editoras (Companhia das Letras, Record e Rocco) foram brancos. Os personagens não fogem à regra: os negros somam 7,9% do total e têm pouca voz: são apenas 5,8% dos protagonistas e 2,7% dos narradores. "Assim, os brancos não apenas compõem a ampla maioria das personagens identificadas no corpus; eles quase monopolizam as posições de maior visibilidade e de voz própria", diz Regina, em artigo sobre o estudo.
O cruzamento de dados entre gênero, faixa etária e cor é significativo. Os personagens adolescentes negros que são bandidos ou contraventores são 58,3% - no caso dos brancos, o percentual é de 11,5%. "Com seus recortes miúdos e autocentrados, nossos romances mal espiam para o lado de fora, se recusando a uma interpretação mais ampla dos fenômenos que nos cercam. E então, lá vamos nós para mais um texto que balança a cabeça e descreve sequestros e assassinatos 'no meio da rua' e 'em plena luz do dia'", continua Regina.
Em busca da construção desses espaços, editoras e autores negros começam um movimento ainda incipiente, mas que faz barulho. Embalados pela redescoberta da autora Carolina de Jesus - que escreveu o romance Quarto de despejo em meados nos anos 1960, traduzido em 14 idiomas -, pela voz da escritora Conceição Evaristo (leia entrevista abaixo), agora candidata a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, e pela notoriedade mundial de Chimamanda Ngozi Adichie, autora nigeriana de best-sellers como Hibisco Roxo e Americanah, essa turma quer ser ouvida - e lida.
Iniciativas como a criação da editora carioca Malê, em 2016, e a Figura de Linguagem, nascida neste ano no Rio Grande do Sul, indicam que os autores cansaram de esperar e têm pressa de mostrar a literatura negra para o público leitor. Mas o que é uma literatura negra? "Produção negra, para mim, é aquela assinada por gente negra de qualquer lugar do mundo. Não basta a temática, tem que ser assinada por gente negra, que pode escrever sobre o que bem entender em suas obras", defende a escritora e sócia da editora Figura de Linguagem, Fernanda Bastos.
O sócio da Malê, Vagner Amaro, concorda. Para ele, a literatura negra é produzida, exclusivamente, por escritores negros. "(Os autores) vão criar a partir das experiências e subjetividades de serem sujeitos negros na nossa sociedade. Nem todos os personagens da literatura negra serão negros, nem todos os temas serão sobre as experiências de ser negro, então não é o tema que define a literatura negra. Mas é correto afirmar que a voz da literatura negra parte de um ponto de vista dos escritores que resolvem escrever uma literatura a partir desta condição de ser negro", diz. É essa voz que começa a ser ouvida.

Um mercado que cresce a cada ano

Editora Malê, de Vagner Amaro, tem 50 autores em catálogo

Editora Malê, de Vagner Amaro, tem 50 autores em catálogo


CAIO BASILIO/DIVULGAÇÃO/JC
Mestre em Biblioteconomia, especialista em Gestão Cultural, jornalista e negro, Vagner Amaro estava atento ao movimento do mercado literário há cinco anos. "Fui percebendo que era um número muito reduzido de escritores negros que alcançavam os espaços mais privilegiados de divulgação literária. As obras destes autores não estavam nas livrarias, a participação deles nos grandes eventos literários era escassa e seus textos não apareciam nos livros didáticos. Também seus lançamentos não se tornavam matérias nos cadernos culturais", comenta. Ao mesmo tempo, Amaro vinha acompanhando manifestações como a nota de repúdio dos autores negros em relação à ausência de representantes na Feira de Frankfurt, em 2013; a suspensão do edital para criadores negros no mesmo ano; o prêmio Jabuti que Conceição Evaristo recebeu com o livro Olhos d'água em 2015 e suas reclamações sobre a desigualdade do mercado editorial.
"Neste mesmo ano, convidei Conceição Evaristo para participar de um projeto de leitura chamado Histórias possíveis, e a produção do evento teve grande dificuldade para adquirir os títulos da autora. Desejei, naquele momento, que todos os livros de Conceição estivessem em livrarias e em lojas virtuais, fáceis de serem comprados e acessíveis de alguma forma. Fui afetado por este movimento e mobilizado a montar uma editora", conta. Nascia a Malê, no Rio de Janeiro, que, hoje, trabalha com cerca de 50 autores, entre obras individuais e coletâneas, e em diferentes níveis de projeção: "É do nosso interesse continuar investindo em autores ainda pouco conhecidos, então podemos fazer tanto tiragens mínimas, de 300 exemplares, como também tiragens bem maiores", informa Amaro.
As publicações são encontradas em livrarias de pequeno e médio portes, eventos literários e lojas virtuais. "A grande dificuldade é o desinteresse das distribuidoras em trabalhar com editoras pequenas e também com a literatura produzida por autores negros. Infelizmente, ainda existe muito preconceito", afirma. Mas o caminho já está sendo aberto. "Vejo algumas práticas que iniciamos já sendo reproduzidas por outras editoras. Mas tento não me seduzir pelo presente, que é muito difícil de ser analisado e compreendido", completa Amaro.

Cotas para brancos

Escritores Fernanda Bastos e Luiz Mauricio Azevedo fizeram provocação ao mercado editorial

Escritores Fernanda Bastos e Luiz Mauricio Azevedo fizeram provocação ao mercado editorial


LUIZA PRADO/JC
"A cada cinco autores negros publicados, a editora vai viabilizar a edição de uma obra produzida por um autor autodeclarado branco, heterossexual, com renda familiar superior a 40 salários-mínimos." A cota para brancos da editora gaúcha Figura de Linguagem, dos escritores Fernanda Bastos, jornalista, e Luiz Mauricio Azevedo, professor, foi uma provocação bem-humorada ao mercado editorial, pouco diverso.
"Por sermos negros e pesquisadores da área, notávamos com mais facilidade ou interesse que havia menos publicações da nossa gente. Temos que fazer uma política discriminatória, ou seja, optamos por admitir que a sociedade é desigual e que nossa empresa vai tentar dar sua contribuição para interferir nesse desequilíbrio", explica Fernanda, que chegou a ser acusada de racismo reverso.
"Recebemos algumas críticas de pessoas brancas, nos acusando de racismo. Em bem menor número aparece quem não entende por que favorecer algumas pessoas brancas. Mas o que realmente se destacou durante esse processo é a quantidade de pessoas que entende a proposta e acredita e deseja os nossos produtos, que é o mais importante para que nossa empresa e nosso intuito se mantenham de pé."
Vem dando certo. Os dois primeiros livros da editora - o romance Pequeno espólio do mal, de Azevedo, e a obra de poesia de Fernanda, Dessa cor - foram bem-sucedidos desde o lançamento. "Projetamos tiragens pequenas, para um público definido. Quanto aos novos autores, embora estejamos com o cronograma de publicação preenchido até o ano de 2019, seguimos dispostos a analisar originais para eventual publicação em 2020/2021", diz Azevedo.
Para os autores e editores, a vida dos negros está muito melhor hoje do que há 20 anos. E, se a vida deles melhorou, o espaço e a visibilidade de suas produções também teve que aumentar. "Somos, hoje, menos pobres do que já fomos. E as tecnologias nos possibilitaram uma grande mudança nos paradigmas de comunicação. Há 10 anos, o episódio que culminou na saída de William Waack da Rede Globo jamais teria tido a repercussão que teve", lembra Azevedo.
E ele vai além: "A Ufrgs tem, hoje, Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis em sua lista de leituras obrigatórias para o vestibular. Isso é resultado da junção dos séculos de lutas da comunidade negra com as transformações midiáticas pelas quais temos passado. Estamos ainda longe de onde gostaríamos, mas não iremos parar de nos mover. Conquistamos nossos espaços com sangue. Foi um preço alto", afirma Azevedo.

Inclusão passa pela literatura infantil

Uma das precursoras do movimento de dar voz a autores e temas negros, Cristina Warth, proprietária da Editora Pallas, do Rio de Janeiro, conta que a editora começou, há 40 anos, como uma das pioneiras na publicação de obras sobre as religiões afro-brasileiras.
Hoje, no catálogo, Cristina tem estrelas do porte de Conceição Evaristo, o escritor e músico Nei Lopes e, no nicho infantil, o ator Lázaro Ramos, que escreveu um livro para cada um dos filhos, Cadernos de rimas do João e Caderno sem rimas da Maria.
O nicho infantojuvenil é um dos pontos fortes da editora, que, mesmo antes de uma lei de 2003 que exige a inclusão no currículo escolar do ensino de história e cultura afro-brasileiras, já apostava no segmento. "Nos interessa que as meninas e os meninos recuperem os temas relevantes à história negra. Mas também queremos que a presença dos personagens negros seja naturalizada", conta ela. Um dos livros do catálogo, por exemplo, Lulu adora histórias, da autora Anna McQuinnda, fala sobre a personagem Lulu, que gosta que o pai leia histórias para ela e se imagina em diversas situações. Lulu, por acaso (ou não por acaso), é uma menina negra. "Alguns professores dizem 'ela é negra', com algum estranhamento. Mas ela poderia ser ou não, a negritude não faz parte da história, mas ainda causa estranhamento."
Cristina credita a preocupação de escolas e professores à política de cotas e ao crescimento da presença dos negros na classe média brasileira. "Tem uma procura maior por essa temática, as famílias negras buscam escolas sensíveis. É um débito que a sociedade carrega, e temos, hoje, uma classe média negra se formando e pensando nisso."
Mas o tema ou os personagens não devem ser restritos a leitores negros, avisa Cristina. "Quando discutimos feminismo, é natural que mulheres queiram saber o que mulheres estão escrevendo. Mas o que a gente briga é que todos busquem, negros ou brancos, que a história seja relevante."

'O campo das artes pode ser seletivo'

Conceição Evaristo encaminhou candidatura à Academia Brasileira de Letras

Conceição Evaristo encaminhou candidatura à Academia Brasileira de Letras


JOYCE FONSECA/DIVULGAÇÃO/JC
Aos 71 anos, Conceição Evaristo quer ser imortal - e não qualquer imortal: a primeira escritora mulher negra a ocupar uma das 40 cadeiras da Academia Brasileira de Letras (ABL) - mais precisamente, a de número 7, cujo primeiro ocupante foi Castro Alves, conhecido pela temática da escravidão no Brasil. "Foi a intensa sugestão de meu nome, pelas redes sociais, que me incentivou e amadureceu o meu gesto de candidatura", conta a autora de romances, poemas e contos - entre as obras, Ponciá Vicêncio e Olhos d'água, vencedor do Prêmio Jabuti 2015.
A escritora, doutora em Literatura Comparada, nasceu em um bairro pobre de Belo Horizonte e trabalhou como doméstica para custear os estudos. "O fato de eu ter insistido na escrita e na publicação nos oferece certo alento. Isto cria nos jovens negros, mulheres e homens a vontade de seguir adiante, apropriando-se da leitura e da escrita como bens culturais que são de pertença de todos, e não só das classes privilegiadas." 
JC Viver - Como a senhora acha que sua trajetória como escritora inspira outras mulheres?
Conceição Evaristo - A minha trajetória de vida indica o enfrentamento que vivi e ainda vivo até hoje, como mulher negra na sociedade brasileira. O fato de eu ter insistido na escrita e na publicação nos oferece certo alento. Vemos que, apesar de tudo, alguns resultados são possíveis. Isto cria nos jovens negros, mulheres e homens a vontade de seguir adiante, apropriando-se da leitura e da escrita como bens culturais que são de pertença de todos, e não só das classes privilegiadas. Creio, ainda, que o fato de minha trajetória ter começado por caminhos alternativos, como o Grupo Quilombhoje, de São Paulo, que reúne escritores e escritoras afro-brasileiras, oferece às mais jovens a observação de que trabalhar no coletivo pode ser um caminho para publicação de nossos trabalhos.
Viver - Quais são as maiores dificuldades para um autor negro ser lido?
Conceição - Eu completaria a frase da seguinte forma: "para um autor negro ser lido, ser conhecido nas mesmas proporções que o outro autor seria", pois não podemos partir da premissa de que um autor negro não é lido. Somos, sim, apesar de que, na maioria das vezes, publicamos em editoras pequenas, sem muito alcance de distribuição, o que reduz - e muito - a possibilidade de nossas obras alcançarem um leque maior de leitoras e leitores. Entretanto, ao longo dos anos, vem sendo formado um público leitor que busca a autoria negra de mulheres e homens. E se, veementemente, venho afirmando que o primeiro lugar de recepção de minha obra foi o Movimento Negro, é preciso ressaltar que, há muito, um público fora do movimento vem buscando a leitura, não só de minha obra, mas de outras e outros também. Entretanto, há, também, a questão de que, para muitas editoras, a temática negra - principalmente se ela for escrita a partir de uma perspectiva, de uma subjetividade negra - não interessa para uma publicação.
Viver - A que a senhora credita a pouca visibilidade de escritoras e escritores negros?
Conceição - À mesma interdição que os sujeitos negros, homens e mulheres, sofrem em realizações diversas. A literatura, como instituição - desde a publicação, a distribuição, as vendas, a constituição de acervo para as bibliotecas etc. -, para a autoria negra, também repete os modos de relações raciais da sociedade brasileira. Por exemplo, maestros, reitores, cientistas, bailarinos, médicos e numa série de outras profissões liberais, a presença de sujeitos negros é bem menor quando se analisa a presença de brancos. O campo das artes pode ser seletivo também.
Viver - Qual é o seu propósito com a candidatura para uma cadeira na ABL?
Conceição - O direito a candidatura à ABL é facultativo a todo cidadão e cidadã brasileira, desde que tenha publicado um livro. Tenho seis livros publicados - dois romances, três livros de contos e uma antologia de poemas - e algumas distinções literárias. Tenho livros traduzidos para francês, inglês, espanhol e contos para a língua alemã. O meu currículo comprova a minha atuação na área da literatura, tanto como escritora quanto como pesquisadora. O meu propósito é ser alçada à condição de imortal, como os demais membros, homens (a maioria) e mulheres (a minoria), já foram elevados.
Viver - Como a senhora vê a reação positiva com a sua candidatura de leitores e movimentos sociais? E uma possível reação negativa da ABL, que teria dito que não aceita pressões externas?
Conceição - Foi a intensa sugestão de meu nome pelas redes sociais, embora, várias vezes, em situações mais reservadas, já havia recebido manifestações de que deveria me candidatar, que me incentivou e amadureceu o meu gesto de candidatura. Foi tudo muito espontâneo, e fui apanhada de surpresa. Creio que essa movimentação pode ser lida não como uma intervenção na ABL, mas como um desejo de que a ABL caminhe junto com os novos discursos da sociedade brasileira. Hoje, há uma tendência de incorporação do discurso da diversidade em várias instâncias culturais, sociais, políticas, econômicas etc. Acho que a minha escrevivência, que tem convocado um público tão diverso, nacional e estrangeiro, merece ser guardada, divulgada, reconhecida pela casa representante da Literatura Brasileira.
Viver - O que a senhora diria para a menina Conceição Evaristo quando ela pensou em ser escritora?
Conceição - Eu diria que ela estava no caminho certo. A vida, com suas histórias, está aí. Não se pode desprezar a vida nem a escrita que dela nasce. Por isso, e apesar de, seguimos com a nossa escrevivência.