A estréia internacional da ópera “Em busca das paisagens perdidas”, com libreto do jornalista Renato Mendonça e música do maestro Vagner Cunha, marca uma nova etapa da curta mas produtiva existência da Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul. De um lado, porque a encomenda de uma obra, por parte da Cia. de Ópera, evidencia seu amadurecimento, em pouco mais de três anos de existência. De outro, porque o compositor tinha um desafio enorme, juntar a tradição da música gauchesca do Rio Grande do Sul com a gramática da ópera internacional. Em tudo e por todos os motivos, o desafio foi excelentemente vencido e “Em busca das paisagens perdidas” é uma belíssima criação musical, dramatúrgica e artística, que juntou duas gramáticas até aqui aparentemente impossível de serem aproximadas.
A obra comemora o centenário de nascimento do “payador” de São Borja, Jayme Caetano Braun. Sua longa bibliografia, a inspiração de seus versos, mas, principalmente, seu firme posicionamento em defesa dos humildes, transformaram-no num poeta ao mesmo tempo admirado por imensa maioria e temido ou combatido por algumas minorias. Isso porque o poeta abandona, em grande parte, a linha pseudo-heroica da tradição gauchesca e faz valer a perspectiva dos deserdados, dos gaúchos anônimos, daqueles justamente que, na sua origem, e como se menciona no encerramento da ópera, foram sempre os despossuídos, despossuídos de terra, despossuídos de quais bens terrenos, despossuídos até mesmo de identidade: eram apenas os “gaúchos”, vagabundos e nômades, os “gaúchos a pé”, de Cyro Martins.
O libreto, inteligentemente, inspirou-se em uns pouquíssimos dados biográficos do escritor e, depois, não exatamente em alguns de seus poemas, embora eles estejam presentes, na interpretação de Pirisca Grecco, mas nos temas e nas ideias desenvolvidas ao longo da obra do poeta. Os “personagens” centrais são, ao lado do poeta, a Terra Bugra (soprano Eiko Senda), a Natureza (soprano Carla Maffioletti) e a Província (soprano Elisa Lopes), conceitos que atravessam toda a obra do compositor. O espetáculo, com a direção cênica de Carlota Albuquerque, de quem é, igualmente, a concepção de todo o trabalho, acrescentou uma coreografia exuberante, com especial destaque para Emily Borghetti, Preta Mina e Carini Pereira. Assim, o espetáculo se divide, equilibradamente, entre a figura do poeta, essencial, mas QUE soube trabalhar dentro de seus limites de cantor e intérprete e, por isso mesmo, alcançou o máximo de rendimento, ao lado das três solistas (Eiko Senda está emocionante; a cantora japonesa, radicada entre nós, incorporou profundamente a personagem da Bugra, emocionando a todos pela veracidade com que vive a personagem); Carla Maffioletti tem uma tonalidade simplesmente maviosa, e enquanto Natureza, espalha toda a sua empatia em volta, enquanto Elisa Lopes dramatiza a figura da Província, sempre em crise e em comoção.
A cenografia de Joana Albuquerque e de Diego Mac se combina perfeitamente com os figurinos e o visagismo de Daniel Lion: sem dúvida, um dos pontos altos de todo o espetáculo e um dos conjuntos que garantiu, desde o primeiro momento, o enlevo da platéia pelo trabalho. A iluminação de Veridiana Matias foi precisa, meticulosa, transitando de um ponto ao outro do palco, destacando o que precisava ser destacado, valorizando os elementos cênicos da cenografia e dos figurinos. Precisa ser destacada, igualmente, a maquiagem dos intérpretes, a cargo de Guilherme Gonçalves e Anita Assenato, que valorizaram a carga dramática das figuras em cena.
Um dos princípios que tem se evidenciado na Companhia de Ópera e que certamente é um dos motivos de seu sucesso, é a falta da vaidade e personalismo. Aqui, a companhia trabalha com a Filarmônica OntoArte Recanto Maestro, com 14 figuras, destacando-se ainda o grupo de bombos, regida pelo maestro André dos Santos, que soube compreender e fazer expressar exatamente o clima da composição.
Desde a primeira cena, em que a Teiniaguá de Emily Borghetti nos remete à lenda imortalizada por João Simões Lopes Neto, o público é tomado pelo espetáculo: sonoridades criativas e mescladas, grupo orquestral e conjunto de vozes, alternância entre recitativos e linhas melódicas, coreografias que se mesclam com os cantores, enfim, no final, teve até chuva de erva mate, um esplendor, foi um espetáculo que comprovou, decididamente, as possibilidades da mistura entre a arte popular e a arte erudita, desde que, ambas, sejam efetivamente, Arte.
Mais que isso, como comentava, emocionado, Flávio Leite, ao final do espetáculo, isso é produção da casa, fomos nós, que criamos isso, a gente pode e sabe fazer isso, não é maravilhoso?