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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 13 de Novembro de 2025 às 18:10

Momento precioso

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Antonio Hohlfeldt
Quando menino, assisti o desenho animado dos estúdios Disney sobre Pinocchio. Anos mais tarde, li a tradução brasileira do livro. “Pinocchio”, de Carlo Collodi, é um clássico, em todos os sentidos. Até porque antecipa um tema hoje fortemente presente em nossa realidade, a solidão das pessoas mais velhas.
Quando menino, assisti o desenho animado dos estúdios Disney sobre Pinocchio. Anos mais tarde, li a tradução brasileira do livro. “Pinocchio”, de Carlo Collodi, é um clássico, em todos os sentidos. Até porque antecipa um tema hoje fortemente presente em nossa realidade, a solidão das pessoas mais velhas.
É provável que a versão disneyana valorizou mais o lado aventuresco do aprendizado moral do boneco falante que se torna menino de verdade. Disney sempre se preocupou com esta perspectiva da moralidade de suas histórias, inclusive valorizando os chamados ritos de passagem das crianças para a adolescência e, depois, para a idade adulta. Neste sentido, “Bambi” (1923) é, certamente, o livro mais emocionante, escrito pelo austríaco Félix Salten, extraordinária e sensivelmente levado ao desenho animado pelos estúdios de Disney.
Pois a narrativa de Pinóquio volta agora aos palcos, com ênfase diversa daquela do texto literário ou do roteiro cinematográfico. Fábio Cuelli, que é professor de teatro e produtor cultural, aqui aparece enquanto dramaturgista e intérprete, seguindo a direção cênica de Liane Venturella. Seu trabalho chama-se “Gepetto” e isso resume sua intenção: há um óbvio deslocamento da ênfase do boneco-menino para o velho marceneiro, criador do boneco. O deslocamento fica mais evidente quando Gepetto é reencontrado em seus derradeiros anos de velhice, sendo acompanhado e cuidado pelo “filho” Pinóquio, que com ele se preocupa, como qualquer um de nós se dedicaria a nossos pais mais velhos.
Neste espetáculo, fica mais evidente esta relação entre pai e filho, sobretudo no momento da velhice. Para tanto, Cuelli valeu-se da interpretação do ator, segundo a tradição teatral, mas acrescentou a manipulação de bonecos (bonecos, porque são mais de um boneco de Gepetto), o maior dos quais é tão extraordinariamente expressivo, que parece um ente verdadeiramente vivo.
A situação é simples e objetiva, quase “pobre”, mas é nesta simplicidade e nesta “pobreza” que se revela a sensibilidade do artista: como qualquer pessoa idosa, Gepetto, aos cuidados de Pinóquio, tem suas manias: não quer comer (odeia sopas), não quer tomar banho, teima em reivindicar sua autonomia, o que, de um lado, incomoda Pinóquio mas, de outro, permite que o espectador, ao acompanhar as diferentes cenas, quase montagens de episódios do cotidiano, construa para si mesmo contexto existente. Pinóquio, agora, é médico, e se Gepetto, marceneiro, criou o boneco com esmero e carinho, Pinóquio agora desvela-se em cuidados com o pai.
Esta primeira parte traz-nos as reflexões do antigo boneco, transformado em menino, agora adulto. O espetáculo é bem pausado, o espaço cênico nos apresenta uma mesa de serviço, como na oficina de Gepetto, com iluminação direta, de abajures, em meio ao palco. Na lateral, outro espaço em que uma ação virá a ocorrer. Atrás da mesa, que impede a visão do espectador, colocam-se os escassos objetos de cena e, sobretudo, os bonecos utilizados para a dramatização. 
Os diálogos criados por Fábio Cuelli são sensíveis, traduzem, com absoluta naturalidade, os sentimentos do personagem para com o pai, a partir de texto de Nelson Diniz, que é também ator e, portanto, sabe escrever de maneira que o texto seja dito com tal naturalidade. Os bonecos são do sempre admirável Mário de Ballentti.
No segundo momento do espetáculo, chegamos à morte. Em algum momento, o velho Gepetto expira. O boneco, cuja expressividade advém sobretudo do olhar, como se vivo fosse, se extingue. O ritual da morte, então, se desenvolve, também com naturalidade e respeito. Raras vezes, ao longo de tantas décadas em que acompanha o teatro em nossa cidade, vi um espetáculo tão bem concebido e realizado, que nos toque tão profundamente quanto este. Pode-se dizer que estamos diante de uma obra-prima. É uma lástima que “Espetáculo Gepetto” teve apenas uma única apresentação. Acho que os produtores deste trabalho deveriam, necessariamente, pautá-lo mais vezes. O público precisa conhecer esta encenação. É um momento precioso.  

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