O espetáculo “Azira´í”, apresentado recentemente na cidade, é um acontecimento histórico e cultural que vai muito além do fato (nem tão simples assim) de ser um espetáculo teatral. São tantos os aspectos envolvidos na concretização deste projeto que fica até difícil a gente tentar trazer todos eles à discussão. Mas vamos tentar.
O leitor imagine um índio no meio da floresta, absolutamente analfabeto (em termos da cultura branca), com sua cultura em choque com o contexto e o risco de desaparecimento. Para sobreviver, esta comunidade precisa aproximar-se justamente de quem a está destruindo. “Aprender” com ela, aqueles seus termos (dela) porque é neste campo (do outro) que precisa lutar se quiser (tentar) sobreviver.
Eu já tive a oportunidade extraordinária de acompanhar algo assim. Em 1972, publiquei o livro “O gravador do Juruna” (obrigado, sempre, editor Roque Jacobi), do índio xavante que, mais tarde, seria o primeiro deputado federal de comunidade nativa eleito no Brasil. Com ele viajei por universidades, visitei sua aldeia e tentei entender sua tragédia (é impossível. Nunca me sai da memória uma frase que dele ouvi, numa madrugada: "Antonio, não sou mais índio, mas também não sou homem branco. O que que eu sou?” O antropólogo Darcy Ribeiro, em seu último e extraordinário livro, transformado em série pelo GNT - ”O povo brasileiro (2006), refere aos mestiços surgidos no período do Brasil Colonial como os “ninguenidades”, nem branco, nem índio; nem branco, nem negro; nem negro, nem índio, etc. O Brasil, neste sentido, é um país feito de “ninguenidades”, e devemos ter orgulho desta condição, ela nos faz diferentes e por isso contribuímos para enriquecer a espécie humana e a civilização dos homens.
“Azira’í” é uma peça de teatro – um musical de memórias, como sua autora prefere dizer e está estampado na edição do texto da obra (Cobogó, 2024). Imagine – volto ao começo – imagine um índio, pior, uma índia, que resolve construir esta epopéia: ela entra no mundo dos brancos, aprende suas regras e, sem universidade, sem escola formal, autodidata, torna-se uma atriz que chega a ser ovacionada por algumas das maiores platéias da França...
“Azira’í” é um esforço extraordinário de busca de comunicação – de diálogo – da índia – atriz, dramaturga, bailarina, artista plástica – Zah`y Tentehar, com a participação do diretor Duda Rios. É de ambos a dramaturgia do espetáculo, resultado de um longo período de reflexões e experiências variadas, resultando num trabalho que é uma quebra de convenção sob todos os aspectos. Trata-se de um trabalho de hora e meia de duração – imagine a gente ficar ouvindo uma índia falar sobre si mesma, sua mãe e sua cultura, durante hora e meia! – e se interessar, e se emocionar, e ao final, querer mais...
Mais que isso: logo na abertura do espetáculo, a atriz se expressa em sua língua nativa durante cerca de dez minutos, sem parar... a gente não entende nada, mas... atenção, sim, a gente se dá conta que está entendendo, mesmo que não entenda. Porque o que Zah`y Tentehar alcança é estabelecer com o público uma ponte emocional, sensorial, que nos prende e nos envolve. No início, deve ser muito difícil para ela: a platéia está fria, distante, braços cruzados... mas ela vai tentando, vai insistindo, melifluamente, e quando a gente nota, estamos absolutamente dependentes de sua fala e de sua figura, ali no palco, que perde a distância e se aproxima de nós, como se a gente estivesse naquela roda, que ela relembra, os índios fazem à noite, em volta da figueira, para comentar os acontecimentos do dia.
O espetáculo, muito palavra, mas também muito elemento cênico, com a cenografia de Mariana Villas- Bôas, figurinos de Carol Lobato, iluminação de Ana Luzia Molinari de Simoni, trilha musical extraordinária de Elisio Freitas, com canções originais de Duda Rios, Elísio Freitas, Marcelo Caldi e da própria Zah´`y Tentehar, é uma experiência artística, mas sobretudo vital, absolutamente inesquecível. A foto dramática e tocante da mãe da atriz, a partir da qual, em torno da qual, e em homenagem da qual todo o trabalho é desenvolvido, a primeira pajé mulher da tribo, Azira´í, que dá nome à encenação, que aparece no final (imagem de Léo Aversa) é algo inesquecível.
O preconceito que ainda muitos temos em relação a estes temas fez com que o teatro não lotasse. Lamentável para quem não foi. Perdeu uma experiência de humanização e de civilização irrepetível. Mas quem foi, sem dúvida, foi um ritual de passagem definitivo.