Em 1832, quando a obra estreia, o público queria receber óperas como essa: “O elixir de amor” faz um estrondoso sucesso de público, como o faz ainda hoje, seja em Nova York, em Lisboa ou em Porto Alegre. O enredo é quase idiota: um camponês ignorante encontra-se apaixonado pela dona da propriedade rural em que ele trabalha. Como chave de interpretação da obra, Adina (a mocinha) está a ler para os seus trabalhadores camponeses (uma boa moça, ela) um romance que remete às narrativas medievais, a história de Tristão e de Isolda. Seja como for, o tal elixir de amor, que ajuda Isolda e Tristão, vai entrar pelos ouvidos do ingênuo camponês para lhe fazer um catastrófico estrago.
Nemorino, o pobre coitado mocinho, no domingo interpretado apaixonadamente pelo tenor Felipe Bertol, dispõe-se a sacrificar o dinheiro que não tem para adquirir o tal elixir que ele acredita piamente existir e deter os alegados poderes miraculosos. Ele teme, sobretudo, o enfrentamento com Belcore, um sargento de passagem pela aldeia, que pretende alcançar os favores da jovem e bela proprietária. Se ela não está interessada em Nemorino, menos ainda em Belcore (o baixo-barítono Daniel Germano), até o momento em que, graças a um enredo em que as coisas vão acontecendo assim, meio que de repente, ela resolve se vingar do enamorado, porque este já não está, aparentemente, tão interessado nela, como até então lhe parecera. O enredo esdrúxulo se completa com o médico charlatão Dulcamara (o também baixo-barítono Guilherme Roman), que logo vende ao camponês o tal elixir de que ele necessita.
Se o enredo é simplório, seus diferentes momentos o são ainda mais: mas não façamos perguntas complicadas como: se o camponês é tão imbecil, como explicar que a jovem proprietária acabe se apaixonando por ele (claro, porque se não, não teríamos final feliz, o que é imprescindível para este tipo de obra). E o charlatão, não vai ser denunciado, nem preso? Bom, parece que 1832 permitia muitas crendices semelhantes às que temos em 2025: intervenções de Ets para mudar resultados eleitorais, como em 2022, etc... seja como for, não pelo efeito do elixir, mas porque “il faut”, para agradar ao público, o casal acaba se concretizando, para gaudio da plateia.
Daniel Germano e Guilherme Roman assumem mais claramente as funções hilárias e cômicas: afinal, estamos diante de uma ópera bufa. Mas o que salva, mesmo, o amalucado libreto de Felice Romani, é a melodia edulcorada de Gaetano Donizetti. De modo geral, ela faz fluir levemente o enredo, os diálogos entre os personagens e, como que a presentear quem chegou até o final do espetáculo, de inopino, revela a ária “Una furtiva lagrima”, que é a passagem mais conhecida da obra, ainda que o compositor não a tenha explorado suficientemente bem, para torná-la ainda mais palatável. De qualquer modo, a voz de Felipe Bertol é perfeita para o momento, e a platéia explode em aplausos, entusiástica e justificadamente.
Elisa Lopes, já havia anotado em uma outra coluna, tem um timbre de voz muito bonito, com desenvolvimento aveludado e melodioso, perfeita para a personagem. Como diz o machista Belcore, vá lá a gente entender as mulheres... ela pode casar com o soldado, mas na verdade, acaba se contentando com o camponês.
A direção de Henrique Cambraia, que também assina a cenografia (com Eduardo Menna) e o figurino (com Letícia Krenzinger) tratou de naturalizar a encenação, imaginando-a numa aldeia colonial italiana. Cuidou, ainda, de propor ações dramáticas paralelas, que acontecessem simultaneamente à cena principal, de modo a dinamizar o espetáculo. De modo geral, deu tudo muito certo, salvo na passagem em que a noiva (Adina) é levada a esmagar uvas dentro de uma tina: a passagem é ridícula (e não tem nada a ver com a ópera bufa). A cenografia está bem resolvida, os figurinos conseguiram bom efeito (contemporâneos e ao mesmo tempo, de época, como o de Belcore), mas a iluminação dormiu no ponto: cada vez que algumas personagens entravam em cena eram precedidas de sombras projetadas por trás do muro que separava os dois espaços da cena, à esquerda do público, o que poderia ter sido facilmente evitável, apenas deslocando um spotlight.
De modo geral, a montagem da Companhia de Ópera, que enfrentou muitos problemas, devido à demora na liberação do dinheiro da produção, conseguiu resolver bem os desafios da montagem. A cena está alegre, graças a um influxo mais decidido da luz branca; o coro desempenhou-se com naturalidade e, enfim, já que era uma ópera bufa, Daniel Germano e Guilherme Roman quase roubaram a cena, não tivesse o público ido ver a ópera só para torcer pelo mocinho e a mocinha. Ah, para não esquecer, e porque é importante: o maestro Evandro Maté garante a tranquilidade, com domínio total da partitura e uma singeleza na regência. Igual juiz de futebol: é bom porque não aparece: mas faz a orquestra soar muito bem.