A edição original francesa de “Teoria King Kong” é de 2006. A tradução brasileira, de Marcia Bechara, é de 2026. Neste meio tempo, a obra recebeu duas versões em inglês. No Brasil, a N-1 Edições é a responsável pela obra, que li há alguns meses. Na transposição para o teatro, Marcia Bechara é a responsável pela dramaturgia, mas ela não se limitou a simplesmente trazer o texto literário para a dramaturgia: através de três personagens femininas, ela propõe uma releitura e um diálogo com a obra e sua autora, Virginie Despente, hoje em dia autora e cineasta, mas que já foi até prostituta de rua. Daí a importância da obra, uma espécie de reflexão aos gritos a respeito da condição feminina, ao longo da história e em especial, na contemporaneidade. A referência a King Kong remete ao filme de Peter Jackson, de 2005, conforme a autora, mas eu diria que, melhor, se refere ao personagem do grande macaco, no sentido, por ela explicitado: o pretenso direito de King Kong exercer sua sexualidade, ainda que violentamente, enquanto macho, sobre a fêmea, ambas as figuras fortemente contrastadas nos seus físicos. Para King Kong, é “natural” que ele possua a fêmea: é contra esta naturalização que Virginie Despentes se coloca em seus trabalhos, que são denúncia e militância, ao mesmo tempo.
A montagem teatral, com cerca de hora e meia de duração, tem a direção de Yara de Novaes. O texto produzido por Marcia Bechara é uma base muito concreta para o desenvolvimento do espetáculo, com enorme economia cênica – apenas um monte de terra preta num lado do palco – cenografia de Dina Salem Levy, com figurinos de Marichilene Artisevskis, que valoriza as cenas e, sobretudo, corporifica, com eficiência, as intenções deste trabalho que, da parte das atrizes, é, também, mais do que interpretação, mas também comprometimento. Amanda Lyra, Ivy Souza e Verónica Valenttino incorporam as três figuras femininas, síntese das várias personagens que atravessam o livro. O conjunto tem uma força dramática admirável, com emocionante destaque da cearense Verônica Valenttino, atriz multiplamente premiada (inclusive com o Shell), que é emoção pura, tanto como atriz quanto intérprete musical, cuja carreira também desenvolve.
O espetáculo tem ritmo quase alucinante (não por acaso, a trilha sonora de Natalia Mallo incorpora o rock e a guitarra), levando a plateia não a assistir, mas a participar do que acontece no palco. Os méritos do texto original e da direção aparecem, sobretudo, na sequência do estupro das três personagens: temos uma narração, retirada quase literalmente das páginas do livro, e transformada em narrativa em cena. Ora, teatro é presentificação da ação, não, narração. Pois aqui está o momento alto do espetáculo em que justamente se quebra este mandamento: a narratividade é tão dramatizada, tão eloquente, que leva o espectador a uma espécie de visibilização do acontecimento, mais que isso, como que a experimentar, nele mesmo, o que está sendo narrado em cena.
Em outros momentos, a troca dos figurinos destaca as diferentes experiências das personagens e os climas dos debates e enfoques propostos pelo texto e, consequentemente, pelo espetáculo.
“Teoria King Kong” é destes trabalhos que confirma a assertiva de que qualquer texto pode se tornar um texto dramático. Porque este é seu mérito principal. Aqui não temos um mero roteiro de encenação, mas uma dramaturgia eficiente, eloquente, que sabe a força da palavra na cena, assim como reconhece a importância do movimento no espaço do palco. Não estamos assistindo a um livro adaptado para o teatro. Estamos vendo um espetáculo de teatro, com seus princípios próprios, inspirado em um livro, mas que buscou, encontrou e desenvolveu, radicalmente, uma linguagem cênica específica. Já se falou em teatro-documento, aqui se poderia pensar em teatro-depoimento. Porque, como anotei mais acima, por mais ensaio que tenha havido, por maior qualidade de direção que tenha Yara de Novaes, é preciso identificação e comprometimento das intérpretes para com aquilo que está sendo dito e mostrado em cena, para que o espetáculo funcione. E “Teoria King Kong” é teatro puro, e por isso, funciona.