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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 11 de Setembro de 2025 às 18:23

Experiência inesquecível

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Antonio Hohlfeldt
O romance Grande Sertão: Veredas completa, no próximo ano, seu 70º aniversário. Guimarães Rosa, de modo geral, tem tido sorte com as recriações de seus textos no teatro. Basta lembrar o conto Meu tio, o Iauaretê, recriado extraordinariamente por Paulo Autran. No caso do romance de 1956, tivemos uma épica versão de Bia Lessa, apresentada no Teatro do Sesi, e, agora, esta trilogia proposta por Gilson de Barros, que foi mostrada, em três noites sucessivas, no Teatro Olga Reverbel: Riobaldo, criação de 2020, que mereceu indicações para o Prêmio Shell para ator e dramaturgia; No meio do redemunho, de 2022 e, mais recentemente, O julgamento de Zé Bebelo. O espectador pode assistir a cada espetáculo separadamente, mas duvido que, ao assistir ao primeiro, não queira conhecer os demais.
O romance Grande Sertão: Veredas completa, no próximo ano, seu 70º aniversário. Guimarães Rosa, de modo geral, tem tido sorte com as recriações de seus textos no teatro. Basta lembrar o conto Meu tio, o Iauaretê, recriado extraordinariamente por Paulo Autran. No caso do romance de 1956, tivemos uma épica versão de Bia Lessa, apresentada no Teatro do Sesi, e, agora, esta trilogia proposta por Gilson de Barros, que foi mostrada, em três noites sucessivas, no Teatro Olga Reverbel: Riobaldo, criação de 2020, que mereceu indicações para o Prêmio Shell para ator e dramaturgia; No meio do redemunho, de 2022 e, mais recentemente, O julgamento de Zé Bebelo. O espectador pode assistir a cada espetáculo separadamente, mas duvido que, ao assistir ao primeiro, não queira conhecer os demais.
Não conhecia Gilson de Barros. Ele é um 'amador' do teatro, no sentido mais literal do termo, embora profissional de longa e premiada carreira. Apaixonado pelo romance de Guimarães Rosa, ele se pôs a estudá-lo cuidadosamente. A partir daí, nasceu o projeto, atualmente concretizado em três espetáculos, a partir de cortes que ele realiza sobre a obra. Acertadamente, Gilson de Barros não pretendeu transpor toda a obra. De modo inteligente, ele propôs-se a leituras transversais, de onde o projeto ter-se desdobrado (até aqui) em três espetáculos. Em cada um deles, há um foco que permite a seleção de textos. Riobaldo escolheu os amores do personagem, Diadorim - a grande e criminosa paixão - a prostituta Nhorinhá e a ingênua Otacília, que lhe serve de trampolim social. Em No meio do redemunho, o acento está dirigido para a discussão entre o certo e o errado, a questão ética levada ao nível do metafísico, sem esquecer a questão ética de sua própria culpa por ter vendido a alma ao diabo (assim como o Fausto de Goethe). Este espetáculo se encerra com a passagem final do romance e, neste sentido, é o que provoca maior emoção no espectador, pois aquelas palavras finais ficam ecoando na nossa cabeça: "Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano. Travessia" (p. 460). Por fim, o terceiro espetáculo, chamado O julgamento de Zé Bebelo, difere um pouco dos dois anteriores. Aqui, o episódio mencionado é tomado no seu todo, completando-se com os desfechos de vida de cada um dos principais personagens.  
O recorte temático transforma os espetáculos em experiências inesquecíveis. Sob a eficiente direção de Amir Haddad, Gilson de Barros não representa: ele encarna o personagem narrador. O aspecto mais eficiente da escolha do ator, que é também seu dramaturgo, é o fato de que, no próprio romance, Riobaldo é o narrador, que recebe um visitante, um homem da cidade, logo transformado por ele em "doutor". Deste diálogo-monólogo se constitui o romance: na medida em que Riobaldo narra para o outro, narra para si mesmo~; contar para o outro é uma espécie de ato conscientizador (confissão que pretende buscar sua absolvição), resumido na pretendida conclusão de que não há Diabo, há apenas o Homem: na verdade, com isso, e ao contrário do que buscava, Riobaldo condena a si mesmo a assumir suas responsabilidades por acertos e erros. 
Gilson de Barros não representa: ele se torna Riobaldo, assim como dá voz aos demais personagens que evoca. É como uma canção de gesta medieval, épica na guerra e lírica nos amores. Gilson/Riobaldo contam para a plateia, no melhor exemplo do que Walter Benjamin idealizou no texto O narrador: só, que neste caso, em um duplo nível, o do personagem e o do intérprete propriamente dito, aqui transmutados em um só.
Comecei a ler o romance pelo menos umas quatro vezes, até concluí-lo. Depois, já o li inúmeras vezes, algumas passagens sei de cor. Daí que ouvir e ver Riobaldo falando meu deu arrepios de emoção. Gilson/Riobaldo são uma presença avassaladora: a pequena figura sentada numa cadeira, no meio do palco, sob o olhar do spotlight se agiganta e nos envolve toda. Experiência inesquecível.
 

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