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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 04 de Setembro de 2025 às 19:26

A pujança do Galpão

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Antonio Hohlfeldt
Sediado em Belo Horizonte e atuando desde 1982, o grupo de teatro Galpão já produziu 27 diferentes espetáculos, atingindo, segundo seus integrantes, mais de 2 milhões de espectadores, inclusive fora do Brasil. Em Porto Alegre, o Galpão, não apenas apresentou dois diferentes trabalhos, como desenvolveu oficinas e participou de um debate na UFRGS. Depois de “Cabaré coragem”, na primeira semana, foi a vez de “(Um) ensaio sobre a cegueira” ser conhecido pelo público, na segunda semana.
Sediado em Belo Horizonte e atuando desde 1982, o grupo de teatro Galpão já produziu 27 diferentes espetáculos, atingindo, segundo seus integrantes, mais de 2 milhões de espectadores, inclusive fora do Brasil. Em Porto Alegre, o Galpão, não apenas apresentou dois diferentes trabalhos, como desenvolveu oficinas e participou de um debate na UFRGS. Depois de “Cabaré coragem”, na primeira semana, foi a vez de “(Um) ensaio sobre a cegueira” ser conhecido pelo público, na segunda semana.
O ponto de partida é o romance de José Saramago, já transformado inclusive em filme. Mas a dramaturgia de Rodrigo Portella, que também assina a direção do espetáculo, afasta-se do enredo do escritor português para refletir mais diretamente sobre a condição feminina numa sociedade essencialmente masculina, com um foco bem preciso no contexto brasileiro, não apenas ao valorizar e explorar uma linguagem mais lúdica, que é parte integrante da identidade do grupo, como referir contextos mais imediatos de nosso cotidiano.
No espetáculo do Galpão, os personagens não vagueiam pelas ruas da  cidade, mas são trancafiados, por iniciativa das autoridades (que se manifestam com um vezo de ironia e sarcasmo muito evidentes – depois de decretar confinamento e autossobrevivência, pedem paciência e cidadania): é evidente que estes galpões – a instituição em que os personagens estão confinados é um antigo asilo de loucos (para os mineiros, isso tem um peso muito forte, graças ao Hospital Colônia de Barbacena) – funcionam como uma metáfora do Brasil atual. Distribuídos em barracões, os recém-cegos dependem da entrega de comida, por parte dos militares que os isolaram, alegadamente, para salvação dos demais membros da sociedade, não infectados. No entanto, em um dos barracões, logo se organiza uma milícia que começa a cobrar dinheiro e joias remanescentes, dos sobreviventes e, depois, suas mulheres.
A partir desta parte, pouco além da metade do espetáculo, o roteiro dá uma guinada e focaliza especificamente a situação das mulheres na sociedade machista brasileira, o que leva ao desfecho do espetáculo, um pouco óbvio, mas que segue o figurino do grupo: desde o espetáculo de estreia, “A alma boa de Setsuan”, de Bertolt Brecht, o Galpão segue de perto a tradição dramática brechtiana, e por isso a forte experimentação de seus espetáculos e sua perspectiva crítica, pedagógica.
“(Um) ensaio sobre a cegueira” é exatamente o que o título indica: é uma determinada abordagem; neste caso, há um afastamento do aspecto simbólico da cegueira, inicialmente explorado, a partir do romance de Saramago, para fixar-se numa cegueira ideológica e preconceituosa (explicitada por uma fala, ao final do espetáculo, quando a personagem afirma que todos estavam cegos ainda antes da cegueira). O desfecho é como que uma sugestão sobre o que a sociedade necessita concretizar para desfazer-se da dominação. Afinal, não deixa de ser irônico que, além do primeiro personagem a se descobrir cego, os que se lhe seguem sejam um médico e um motorista de ambulância. Mais que isso, que a única personagem não infectada seja a esposa do médico, aquela que vai cumprir a função de justiceira, ao final do espetáculo.
O elenco do Galpão é admirável pela versatilidade: além de interpretar, todos cantam e a maioria utiliza instrumentos musicais os mais diferentes, o que permite uma  variedade quase infinita de alternativas para a narratividade; dentre os vários procedimentos, o Galpão atualiza o sistema coringa, de Augusto Boal, no qual todo o ator vive e interpreta vários personagens, mas, neste caso, dá ao processo um caráter cômico que ajuda a quebrar a tensão dramática do espetáculo, quando o ator avisa à plateia: “agora, eu sou ... fulano...”
Também o uso da narrativa, em primeira e/ou terceira pessoas, levando-nos ao chamado teatro épico de Brecht, permite uma multiplicidade de processos de distanciamento emocional, agregando os instrumentos musicais, um espaço cênico apinhado de tralhas e pretensos “objetos inúteis”, que passam a ganhar outros sentidos que não os seus originais e, por fim, o personagem do menino, que atravessa toda a encenação (140 minutos!, que a gente não sente passar), gritando estar com fome (alusão à miséria nacional). A tudo isso se soma o envolvimento da platéia: muitos dos espectadores receberam placas com sinais em vermelho e em verde e são convidados a participarem da encenação diretamente no palco, enquanto personagens.
Em resumo, o Galpão continua com toda a pujança, pesquisando e experimentando, jamais se deitando nos louros do sucesso anterior. A melhor prova disso é, não apenas inspirar-se em José Saramago como, depois, distanciar-se dele.

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