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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 28 de Agosto de 2025 às 18:57

Contestando um (falso) conceito

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Antonio Hohlfeldt
Na Mostra de Teatro do DAD – Departamento de Artes Dramáticas, escola de formação em artes cênicas da UFRGS, vinculada ao Instituto de Artes, iniciativa que já criou tradição, em 2023, foi apresentado um espetáculo chamado “O espelho quebrado”, que tem circulado pelo estado e agora voltou à cena do Teatro do SESC, numa programação especial daquela instituição.
Na Mostra de Teatro do DAD – Departamento de Artes Dramáticas, escola de formação em artes cênicas da UFRGS, vinculada ao Instituto de Artes, iniciativa que já criou tradição, em 2023, foi apresentado um espetáculo chamado “O espelho quebrado”, que tem circulado pelo estado e agora voltou à cena do Teatro do SESC, numa programação especial daquela instituição.
O roteiro é de Alexandre Azevedo e de Guadalupe Casal. Ambos se autointitulam educadores, sendo Alexandre o intérprete do espetáculo, de cerca de uma hora de duração, e Guadalupe, a diretora do trabalho. “O espelho quebrado” tem trilha sonora do próprio ator, com figurinos e indumentárias dele mesmo e de Matheus Wathier, cenografia de Reni Gabriel.
O tema é oportuno: a violência institucionalizada contra as mulheres em sociedades essencialmente machistas. Azevedo e Casal optaram, contudo, por uma inversão de ponto de vista, o que é interessante, embora, vez ou outra, ao longo do espetáculo, cause algum estranhamento. É que, muitas vezes, o personagem-narrador parece defender um discurso machista para, logo depois, inverter a situação. Isso provoca este estranhamento, mas tem a vantagem de chamar a atenção para o absurdo da situação focada: o mais evidente é quase ao final do espetáculo, quando o personagem, chegando à escola de teatro, critica suas colegas atrizes pelas reações que evidenciam durante o ensaio de um espetáculo, que acaba sendo cancelado, o que o deixa indignado. Esta primeira reação, contudo, logo é corrigida e denunciada: o personagem inclusive se reconhece errado, expressa claramente o desafio cotidiano que é se corrigir de tais comportamentos, e assim a peça segue até o final.
O roteiro não é ruim, mas certamente pode ser melhorado, distanciando-se de algumas piadas e jogos de palavras que não ajudam no desenvolvimento do texto. Alexandre Azevedo é um ator que ainda pode amadurecer enquanto ator. Mas evidencia uma dedicação comovente ao trabalho e ao personagem. O que mais funciona no espetáculo, contudo, é o que parece ser chamado de “indumentária”, pela equipe, combinado com a cenografia: o uso de caixas de papelão, não apenas para marcar e definir os espaços cênicos, quanto para constituir eventuais figurinos ou adereços, como no caso do rei francês. A alternativa criada é profundamente criativa e o ponto alto de todo o espetáculo. Só isso já valeria como justificativa para se assistir ao trabalho.
Alexandre Azevedo está seguro em seu trabalho, mas lhe falta maior consistência de interpretação. Por vezes, o próprio texto acaba dificultando seu trabalho, ao escorregar para certos prosaísmos desnecessários, como se disse. O texto, feito na perspectiva de uma narrativa rememorativa da vida do personagem, leva-o claramente a uma preocupação didática quanto ao tema, o que deve ser menos enfatizado. É certo que desde Friedrich Schiller, no pré-Romantismo, o teatro tem esta preocupação educativa dos homens em sociedade. Mas é bom lembrar que também os gregos valorizavam esta mesma vocação para as artes. Paidéia, era como designavam a formação abrangente e extensiva do ser humano, para o que colaborava, dentre outras manifestações, o próprio teatro. Mas se lemos ou assistimos a uma tragédia daquela época, vemos que, acima de tudo, existe um enredo em desenvolvimento, uma narrativa que apresenta ações dramáticas a partir do que, então sim, chega-se a alguma “lição”. No caso do roteiro de Alexandre Azevedo e de Guadalupe Casal me parece que houve uma ênfase demasiada no aspecto educativo – aliás, esta mesma ênfase está explicitada em se declararem reiteradamente “educadores”, em todo o material promocional do espetáculo. O teatro precisa ter independência em relação à pedagogia. O teatro, como qualquer outra arte, primeiro, precisa ser ele mesmo para, a partir daí, exercer eventual função educativa. É aqui que “O espelho quebrado” fica a desejar.
Última observação: inteligente o título da obra. Aliás, título que unifica todo o trabalho, inclusive a partir da trilha sonora que roda logo na abertura do espetáculo, e que fala num “homem íntegro”, conceito que, justamente, o texto dramático pretende denunciar e contestar.
Em síntese, com falhas, sim; mas excelente iniciativa, a evidenciar que ainda podemos fazer muito para discutir tais questões e que o teatro deve, sim, contribuir com tal debate, desde que não deixe de ser teatro, antes de tudo.   

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