Vencido pela Influenza, fui obrigado a me afastar do que está em cartaz na cidade. Mas, se não assisti aos espetáculos mais recentes, tive a oportunidade de fazer a leitura de um livro que, lançado originalmente em 2012, acaba de receber (que beleza!) uma nova edição, Metalinguagem e teatro - A obra de Jorge Andrade, pela sempre admirável editora Perspectiva, de São Paulo que, não obstante a morte de seu idealizador, Jacob Guinsburg, continua em plena atividade.
Ao lado de Nelson Rodrigues, mas com características absolutamente diversas, Jorge Andrade é um dos nossos mais importantes dramaturgos da contemporaneidade. Ao contrário de Nelson, ele não teve tanto sucesso de público, mas nem se tornou maldito, explicitamente, como o carioca. Mas, à semelhança de Nelson, tem obras que, apesar de editadas em livro, inclusive no volume referencial Marta, a árvore e o a_ relógio, ainda não encontraram condições para serem levadas ao palco. Se Álbum de família (1946) tornou Nelson Rodrigues 'maldito' até mesmo entre amigos, como Manuel Bandeira e Álvaro Lins, a complexidade das montagens de textos como O sumidouro e As confrarias, a primeira pelo aparato tecnológico, e a segunda pela quantidade de personagens e figurantes, teve o mesmo efeito. Assim, a tetralogia - única no mundo, diga-se de passagem - resumida naquele volume, e que é chamada de Ciclo 1 pela autora deste estudo, Catarina Sant' Anna, tem sido mais lida do que encenada. Para Nelson Rodrigues, a maldição vem se esgotando, na medida em que usos e costumes, valores sociais e religiosos experimentam modificações. Quanto a Jorge Andrade, a maldição perdura devido aos altos custos das eventuais montagens, o que só poderia ser resolvido se tivéssemos um grupo estatal de teatro, o que inexiste no País, infelizmente.
Catarina Sant'Anna utilizou, na concretização deste alentado volume de 326 páginas, um texto definitivo para o estudo da dramaturgia de Jorge Andrade, reunindo sua tese de doutorado e depois os estudos que desenvolveu num estágio pós-doutoral. A autora foi às fontes primárias do dramaturgo, isto é, primeiro que tudo, ao espólio do escritor, identificando e comparando não apenas as várias versões das peças já devidamente identificadas pelos seus títulos, tais como hoje os conhecemos, como reconstituindo a gênese de cada texto, a partir de versões que eram identificadas de modo diverso. Ela, inclusive, destaca que, na maioria das vezes, Jorge Andrade escrevia um texto só depois de definir seu título, além do que costumava escrever simultaneamente várias obras, o que evidencia o quanto sua concepção da tetralogia não teve uma motivação externa, mas sim, interna: de um lado, entender sua própria origem familiar e pessoal (busca de uma identidade profunda) e, do outro, compreender que esta identidade se constituía também de modo social e público. Daí a reorganização das obras já escritas, que sofrem modificações, imbricando-as no que ele vai chamar de "dez diferentes atos" de uma grande peça teatral. Na Idade Média, havia as encenações de mistérios que duravam, por vezes, toda uma jornada; no caso de Jorge Andrade, em geral, cada obra, isoladamente, tem pelo menos duas horas de duração e, no conjunto, somariam cerca de 24 horas de leituras/encenações, caso fosse possível "maratonar" - como se usa a expressão hoje em dia - todo o seu trabalho.
Mas Catarina Sant'Anna vai mais longe: procura organizar também as demais peças teatrais de Jorge Andrade e que ficaram fora deste Ciclo I mas que, segundo ela, podem ser agrupadas (ao menos, em sua maioria), num Ciclo II, mais urbano e contemporâneo (o primeiro é mais rural, porque histórico, recriando as origens da organização social estratificada do Brasil, a partir das famílias quatrocentonas de MG e SP).
Para completar seu trabalho, que por isso mesmo é considerado como um estudo de metalinguagem da obra do dramaturgo, a autora localizou críticas, entrevistas e documentos os mais variados que permitem diferentes luzes sobre esta obra que não encontra semelhante em nenhuma criação mundial. Por tudo e em tudo, Metalinguagem e teatro é uma obra iluminadora.