Assistir ao extraordinário Não me entrego, não!, de Othon Bastos e Flavio Marinho, na interpretação central de Othon Bastos e participação especial de Juliana Medela é, antes de tudo, uma das mais fortes emoções que o teatro pode proporcionar a um espectador. O título da obra pode ser um resumo da própria vida e carreira do ator, mas também é referência a uma passagem do filme Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, em que Othon Bastos interpreta o cangaceiro Corisco, o que, de certo modo, projetou-o de maneira definitiva no cinema, onde viria a fazer cerca de uma centena de trabalhos.
No conjunto de seus trabalhos, quase sempre de dramaturgia e direção, Flávio Marinho realizou, dentre outros, Cauby! Cauby (2006), sobre o cantor Cauby Peixoto, e A vingança do espelho: A história de Zezé Macedo (2013). O trabalho mais recente, e que foi visto em Porto Alegre, foi Judy: O Arco-íris é aqui, sobre a atriz Judy Garland, também um trabalho de cuidadosa performance.
No caso de Othon Bastos, certamente o maior desafio de Marinho foi escolher, a partir do farto material apresentado pelo ator, aquilo que, de um lado, deveria/poderia ser selecionado para ser integrado ao espetáculo e, de outro, o modo de organizar este material, apresentando-o num espetáculo sem que fosse apenas um amontoado de referências.
A opção foi organizar tudo temática e cronologicamente, combinando os dois eixos, o que, de qualquer modo, não deve ter sido fácil. Seja como for, a peça teatral começa com a infância e a adolescência do ator. Em vários momentos, ele reconhece que teve sorte e acaso. Na verdade, o que se observa é que ele tinha a coragem de experimentar e se colocar no espaço: foi assim que conheceu Paschoal Carlos Magno, que lhe deu as primeiras oportunidades, inclusive poder estudar teatro em Londres. Certamente, destas experiências nasceram uma das caraterísticas e qualidades principais do ator: sua articulação absolutamente perfeita de uma frase, escandindo sílabas e enfatizando os erres, o que dá uma sonoridade muito pessoal para a sua expressão. Othon Bastos jamais deixa que uma vogal ou uma sílaba desapareçam ou deixem de ser ouvidas, sua entonação é absolutamente perfeita, certamente experiência de um teatro shakespeareano.
Mas isso poderia ser uma qualidade externa do intérprete. O mais importante é o que vai ficando evidente ao longo de todo o espetáculo: sua clareza quanto às responsabilidades sociais, o lado que deveria ocupar no espectro social e o cuidado com que sempre escolheu os textos ou os roteiros que iria interpretar. De tudo isso, o saldo é simplesmente extraordinário, não só na quantidade quanto, sobretudo, na qualidade dos trabalhos de que participou.
Este aspecto, central em sua carreira, faz com que Não me entrego, não! se transforme numa espécie de antologia do teatro e da cultura brasileira dos anos 1960 em diante, o que, para aqueles que viveram a época, como eu, permite uma imensa felicidade em rememorar nomes de diretores e artistas que se destacaram, ou títulos de obras que marcaram o período. Para quem for mais jovem, valem as referências a personagens e trabalhos que, depois, podem ser procurados e estudados nos dicionários de teatro ou de cinema brasileiros, bem como histórias da cultura brasileira (a peça está publicada pela editora Cobogó).
O recorte apresentado pelo espetáculo prioriza aqueles anos mais difíceis, que atravessam a ditadura pós-1964, em que, para não sofrer a censura, havia que se encontrar alternativas inteligentes e driblar os controles inquisitoriais.
Conheci pessoalmente Othon Bastos desde os seus primeiros espetáculos do Teatro Oficina, em São Paulo, quando também ele conheceu a atriz Martha Overbeck, sua companheira até hoje. Othon e Martha produziram alguns dos espetáculos mais icônicos de resistência à ditadura, atravessando, não sem perigos, aquele mar proceloso. Poder reencontrar o ator, aos 92 anos de idade, com toda a vitalidade que evidenciou no palco do Theatro Simões Lopes Neto é uma fortíssima e inesquecível emoção.