Embora um dos pontos mais positivos do Palco Giratório, que o Sesc promove anualmente, seja a circulação de grupos teatrais entre as diferentes regiões do Pais, permitindo que conheçamos grupos que, de modo contrário, jamais chegariam até nós, parece que neste ano cresceu esta ênfase, com o fato de que os temas também são mais locais e regionais. Assisti dois destes grupos e seus respectivos espetáculos, que comento a seguir.
Do Ceará, o Grupo Pavilhão da Magnólia nos trouxe A força da água, com dramaturgia e direção de Henrique Fontes e interpretações de Denise Costa, Eliel Carvalho, Jota Júnior Santos, Nelson Albuquerque e Silvianne Lima. O espetáculo se apoia num roteiro que bebe evidentemente a inspiração do chamado teatro político de Bertolt Brecht. Não se conta uma história, propriamente dita, mas se toma um tema - no caso a água (e sobretudo seu oposto, a seca) - para se refletir a respeito de processos sociais variados. Neste sentido, a narrativa é diversa, no sentido de utilizar texto, música, projeção de imagens e manipulação de bonecos, na melhor tradição do chamado "teatro didático" do dramaturgo alemão: o que se quer mostrar é como a seca é manipulada pelas elites sociais da região, de maneira a manter e radicalizar a marginalização dos grupos populacionais mais pobres.
A primeira imagem é sugestiva, simbolicamente falando: na cena escura, iluminada apenas por celulares, os personagens, que se acham aparentemente nos subterrâneos de um prédio, procuram vazamentos de água entre os canos aéreos que examinam. Mesclando dramaticidade e comicidade, a narrativa dá um salto para historicizar as primeiras secas registradas no Ceará, na segunda metade do século XIX, e a maneira maléfica - não há outra expressão a ser usada - pela qual as autoridades governamentais deslocam populações atingidas pela seca até os arredores de Fortaleza, terminal da linha férrea que serve de meio de transporte para a migração fechada. A área urbana é isolada e transformada num gueto onde as mesmas autoridades desenvolvem uma política de genocídio gradual, mas constante, evitando que tais populações invadam as chamadas áreas nobres da cidade. O processo culmina com a decisão de se construir uma represa na região, inundando toda a área e, assim, fazendo desaparecer as memórias dessas populações e, com elas, sua própria história. O processo, evidentemente, não é novo, bastando lembrar o que, na época da ditadura militar, se fez com a região de Canudos, a chamada represa de Cocorobó. Mas a bem da verdade, não foi apenas no período da ditadura militar em que ocorreram absurdos deste tipo...
Na medida em que este grupo atua enquanto um coletivo, o tipo de espetáculo escolhido para abordar o tema é perfeito, exigindo, evidentemente, um múltiplo preparo de todos os seus integrantes, que se alternam nas diferentes funções, emprestando ao espetáculo uma vitalidade surpreendente.
O cuidado especial com o movimento de cena, a cargo de Ana Claudia Viana, é fundamental para este tipo de espetáculo, porque o intérprete não pode titubear quanto à função que, naquele momento, precisa desenvolver no palco. Também a cenografia de Rodrigo Frota e os figurinos de Ruth Aragão mais os adereços de Beethoven Cavalcante se tornam elementos fulcrais do trabalho, o que, aliado à excelente preparação vocal por Thiago Nunes, permite o desempenho absolutamente correto de todo o elenco, ao longo do espetáculo.
O trabalho evidencia que experiências como aquelas desenvolvidas por pesquisadores como Brecht, por volta dos anos 1930 e 1940, não perderam sua oportunidade. Pelo contrário, permitem que um espetáculo que busca conscientizar a plateia sobre o tema da água, conforme o título da obra, também reflita a respeito deste que é um dos mais tristes fenômenos climáticos e sociais do Nordeste, mas que periga estender-se a todo o planeta, que é a questão da seca. Os antípodas se encontram e as irresponsabilidade sociais das elites sempre explodem sobre os segmentos populacionais mais marginalizados.