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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 19 de Junho de 2025 às 20:16

Peça 'A Força da água': da água para a seca, sempre a marginalização

'A Força da Água', do Grupo Pavilhão da Magnólia, foi uma das atrações do Palco Giratório 2025

'A Força da Água', do Grupo Pavilhão da Magnólia, foi uma das atrações do Palco Giratório 2025

/ARTUR BLUZ/DIVULGAÇÃO/JC
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Antonio Hohlfeldt
Embora um dos pontos mais positivos do Palco Giratório, que o Sesc promove anualmente, seja a circulação de grupos teatrais entre as diferentes regiões do Pais, permitindo que conheçamos grupos que, de modo contrário, jamais chegariam até nós, parece que neste ano cresceu esta ênfase, com o fato de que os temas também são mais locais e regionais. Assisti dois destes grupos e seus respectivos espetáculos, que comento a seguir.
Embora um dos pontos mais positivos do Palco Giratório, que o Sesc promove anualmente, seja a circulação de grupos teatrais entre as diferentes regiões do Pais, permitindo que conheçamos grupos que, de modo contrário, jamais chegariam até nós, parece que neste ano cresceu esta ênfase, com o fato de que os temas também são mais locais e regionais. Assisti dois destes grupos e seus respectivos espetáculos, que comento a seguir.
Do Ceará, o Grupo Pavilhão da Magnólia nos trouxe A força da água, com dramaturgia e direção de Henrique Fontes e interpretações de Denise Costa, Eliel Carvalho, Jota Júnior Santos, Nelson Albuquerque e Silvianne Lima. O espetáculo se apoia num roteiro que bebe evidentemente a inspiração do chamado teatro político de Bertolt Brecht. Não se conta uma história, propriamente dita, mas se toma um tema - no caso a água (e sobretudo seu oposto, a seca) - para se refletir a respeito de processos sociais variados. Neste sentido, a narrativa é diversa, no sentido de utilizar texto, música, projeção de imagens e manipulação de bonecos, na melhor tradição do chamado "teatro didático" do dramaturgo alemão: o que se quer mostrar é como a seca é manipulada pelas elites sociais da região, de maneira a manter e radicalizar a marginalização dos grupos populacionais mais pobres.
A primeira imagem é sugestiva, simbolicamente falando: na cena escura, iluminada apenas por celulares, os personagens, que se acham aparentemente nos subterrâneos de um prédio, procuram vazamentos de água entre os canos aéreos que examinam. Mesclando dramaticidade e comicidade, a narrativa dá um salto para historicizar as primeiras secas registradas no Ceará, na segunda metade do século XIX, e a maneira maléfica - não há outra expressão a ser usada - pela qual as autoridades governamentais deslocam populações atingidas pela seca até os arredores de Fortaleza, terminal da linha férrea que serve de meio de transporte para a migração fechada. A área urbana é isolada e transformada num gueto onde as mesmas autoridades desenvolvem uma política de genocídio gradual, mas constante, evitando que tais populações invadam as chamadas áreas nobres da cidade. O processo culmina com a decisão de se construir uma represa na região, inundando toda a área e, assim, fazendo desaparecer as memórias dessas populações e, com elas, sua própria história. O processo, evidentemente, não é novo, bastando lembrar o que, na época da ditadura militar, se fez com a região de Canudos, a chamada represa de Cocorobó. Mas a bem da verdade, não foi apenas no período da ditadura militar em que ocorreram absurdos deste tipo...
Na medida em que este grupo atua enquanto um coletivo, o tipo de espetáculo escolhido para abordar o tema é perfeito, exigindo, evidentemente, um múltiplo preparo de todos os seus integrantes, que se alternam nas diferentes funções, emprestando ao espetáculo uma vitalidade surpreendente.
O cuidado especial com o movimento de cena, a cargo de Ana Claudia Viana, é fundamental para este tipo de espetáculo, porque o intérprete não pode titubear quanto à função que, naquele momento, precisa desenvolver no palco. Também a cenografia de Rodrigo Frota e os figurinos de Ruth Aragão mais os adereços de Beethoven Cavalcante se tornam elementos fulcrais do trabalho, o que, aliado à excelente preparação vocal por Thiago Nunes, permite o desempenho absolutamente correto de todo o elenco, ao longo do espetáculo.
O trabalho evidencia que experiências como aquelas desenvolvidas por pesquisadores como Brecht, por volta dos anos 1930 e 1940, não perderam sua oportunidade. Pelo contrário, permitem que um espetáculo que busca conscientizar a plateia sobre o tema da água, conforme o título da obra, também reflita a respeito deste que é um dos mais tristes fenômenos climáticos e sociais do Nordeste, mas que periga estender-se a todo o planeta, que é a questão da seca. Os antípodas se encontram e as irresponsabilidade sociais das elites sempre explodem sobre os segmentos populacionais mais marginalizados.
 

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