Antonio Hohlfeldt
O festival Palco Giratório, do Sesc, já trouxe a Porto Alegre alguns espetáculos memoráveis, como Luis Antonio Gabriela, de Nelson Baskerville que, felizmente, veio dois anos seguidos ao festival. Em 2025, foi a vez de Ao vivo (dentro da cabeça de alguém), texto original de Márcio Abreu, que também dirige o espetáculo. Num trabalho de cerca de duas horas de duração, acompanhamos - participamos, não apenas assistimos - a uma espécie de liturgia de purificação, que tem altos e baixos de concentração dramática mas que, como cheguei a comentar com Abreu, ao final do espetáculo, é impossível de cortar (ou acrescer): a gente gosta ou não gosta, e nem tem de gostar de tudo ou desgostar de tudo. Em geral, não gosto quando um dramaturgo dirige seu próprio texto. O diretor não consegue se distanciar do que escreveu, é um mau leitor de seu escrito. Mas neste caso, só Marcio Abreu poderia dirigir este espetáculo, porque, enquanto texto/roteiro e encenação, Ao vivo (dentro da cabeça de alguém) é um grande painel, como aqueles murais que nos anos 1940 conhecemos na América Latina, de Portinari a Diego Rivera, eu diria, na melhor tradição da arte latino-americana do folhetim e do melodramático - algo que, mesmo no excesso, está de acordo com aquilo a que se refere, numa espécie de discurso maneirista que é a única maneira capaz de expressarmos a nós mesmos.
Formalmente, Ao vivo (dentro da cabeça de alguém) nasceu de um insight da atriz Renata Sorrah, quando participava de uma produção de A gaivota, de Anton Tchekov. É interessante observar que, embora muitas vezes aproximado do realismo, a dramaturgia de Tchekov é muito impressionista, porque se refere à realidade histórica, externa aos personagens, desde o ponto de vista interno e emocional dos mesmos.
Esta é a grande qualidade deste espetáculo: é uma torrente que explode, é uma obra para este exato momento. É provável que, daqui a uma década, ele se torne ininteligível. Mas o teatro é feito de aquis e de agoras, e por isso este espetáculo é radicalmente oportuno. Há dois grandes momentos na performance: um deles, aquele em que Renata lê uma longa relação de acontecimentos, sem ordem cronológica, a serem relembrados no futuro. Não só desordenados no tempo quanto sem qualquer hierarquia entre si, eventos sócio-políticos coletivos ou acontecimentos mais circunscritos se mesclam a experiências particulares de determinados segmentos sociais. Mas esta sequência, numa leitura quase sem pontuação, que vai empilhando referências, permite uma espécie de caleidoscópio memorialístico em que qualquer um de nós, vai se reencontrar, mais ou menos, nas referências acumuladas. O outro momento é quase ao final do espetáculo, quando Bianca Manicongo (Bixarte) assume o comando do espetáculo e, durante mais de dez minutos, faz um solo absolutamente inesquecível e emocionado, reivindicando os direitos os segmentos sociais normalmente marginalizados de nossa sociedade, dos indígenas aos negros, passando pelas comunidades LGTB+.
É admirável que uma atriz de carreira consagrada no centro do País desloque-se para uma praça relativamente periférica, como Curitiba (como seria Porto Alegre, evidentemente), para participar de um grupo que, apesar de seus vinte anos de história, por certo não traz o renome que companhias do eixo Rio-São Paulo apresentam. Mas Sorrah se coloca como uma "trabalhadora", uma integrante do grupo, e assim atua, lado a lado com intérpretes como Rodrigo Bolzan, Rafael Bacelar e Cássia Damasceno, que evidenciam segurança e disciplina admiráveis. De todos, porém, se sobressai a já referida Bianca Manicongo (Bixarte), uma artista extraordinária: excelente interpretação, voz corretíssima nas sequências musicais e uma presença cênica que surpreende e entusiasma.
Por tudo isso, o público ovacionou, mais do que justamente, este espetáculo. O Palco Giratório, mais uma vez, nos permitiu conhecer um espetáculo que, fora da tradição das grandes produções comerciais, precisa ser obrigatoriamente conhecido e reconhecido.