Antonio Hohlfeldt
À primeira vista, Dois de nós, do dramaturgo carioca Gustavo Pinheiro, faz parte daquele 'teatrão' comercial que serve para divertir, e nada mais. De todo o modo, isto não é pecado, se resultar em um bom espetáculo. A direção de José Possi Neto, as interpretações de Antonio Fagundes e Christiane Torloni, e a parceria dos mais jovens atores Alexandra Martins e Thiago Fragoso garantem a qualidade do espetáculo, com cerca de hora e meia de duração, cenário convencional de Fábio Namatame (que também assina o figurino) e desenho de luz de Wagner Freire.
No final do século XIX, na França, a pièce bien faite explorava o cotidiano da classe média, como que documentando as transformações na passagem do ancien régime para a modernidade. O Brasil repetiu esta dramaturgia logo nas primeiras décadas do século XX: é graças a estes textos que compreendemos a sociedade brasileira que, a partir do Rio de Janeiro, se urbanizava.
O Brasil tem experimentado diferentes transições, mas a segunda metade do século XX e as primeiras décadas do século XXI têm sido mais radicais, com o surgimento de uma sociedade tecnológica em que as diferenças geracionais ficaram mais evidentes, com a marginalização social dos mais velhos. Alguém escreveu, a propósito de Dois de nós, que trata-se de um drama sobre a classe média desestabilizada pelas transformações do cotidiano. Isso é genérico, mas acerta na mosca. O que é importante, para a avaliação da qualidade da dramaturgia, é como se apresenta isso ao público, no desenvolvimento da trama. Aqui, Gustavo Pinheiro se justifica. Autor de obras como A tropa, peça de estreia que coloca no leito de morte um velho militar e seus quatro filhos, criados sob a rígida disciplina do quartel, e A lista, que apresenta uma cantora lírica que se coloca à disposição dos moradores mais velhos do prédio em que mora, durante a pandemia da Covid, para ir ao supermercado, Pinheiro, de fato, parece preocupar-se em compreender quais e como se dão tais mudanças e o quanto afetam as relações pessoais e sociais.
Neste caso, a tarefa é cumprida a contento, nos moldes daqueles grandes dramaturgos profissionais dos EUA, que dominam uma espécie de vade mecum sobre como escrever uma peça dramática que tenha aparência de comédia, discuta dramaticamente seu tema e mantenha o equilíbrio entre estas duas características a contento do espectador.
Pedro Paulo (Pepê) é um jovem publicitário que se casa com uma filha da elite, de quem recebe apoio para o início de sua carreira; Maria Helena (Leninha), a filha, até queria fazer sua própria carreira, mas é destinada à vida familiar, enquanto Pepê a trai com todas as mulheres possíveis.
O espetáculo se abre quando ambos possuem cerca de 70 anos de idade e participam de uma festa de um casal de amigos. Encontram-se num resort. Falam mal dos amigos, mas não se diferenciam tanto assim desses outros. A presença no quarto de hotel onde, 30 anos atrás, eles também se encontravam, provoca as lembranças. Assim, o passado é presentificado por um outro casal, nos 40 anos de idade, eles mesmos, algumas décadas atrás. O texto, inteligentemente, cria um mote reiterado, quando os jovens dizem que não são ou não fazem ou não sentem aquilo que os velhos experimentam: "mais vai ser, mas vai fazer, mas vai sentir" etc., o que cria uma reação hilária imediata.
A peça retoma chavões e preconceitos da classe média dos anos 1980 e 1990, para depois desconstruí-los. Gradualmente, as figuras femininas emergem com forma e se afirmam, ao contrário das masculinas, que se revelam acomodados e pouco propensos à resistência e à renovação.
Antonio Fagundes navega em águas plenamente conhecidas. Do mesmo modo, Christiane Torloni. Thiago Fragoso é mais acomodado e, assim, quem se revela é Alexandra Martins.
O texto é bem construído e inteligentemente desenvolvido, à exceção do final, que me parece muito piegas. O espetáculo se mantém, mas poderia ter pelo menos meia hora a menos. Teria mais força, na concentração do foco, e evitaria repetições.