Antonio Hohlfeldt
O Grupo Tholl surpreendeu a todos com a performance de Lendas do Sul, baseada nos três conhecidos textos de João Simões Lopes Neto. O espetáculo foi muito mais dança e teatro do que propriamente circo, o que não implica na qualidade do espetáculo mas, sim, nas potencialidades e na exploração de novas linguagens pelo querido grupo pelotense.
Com cerca de uma hora de duração, Lendas do Sul teve dramaturgia criada por João Bachilli, que também assina o espetáculo, que tem ainda a criação de adereços e figurinos dele mesmo, com Wanda Hobus. A trilha sonora, criada especialmente para o trabalho, é de Luciano Mello, e sobretudo na parte final de O negrinho do pastoreio é extremamente emotiva. Os adereços de Douglas Gaiola são excelentes, e a produção de João Schmidt, perfeita em atender às idealizações de Bachilli, de onde a unidade de todo o espetáculo.
Mais do que transpor as lendas para a linguagem cênica, o que o Tholl atingiu foi uma leitura poética daqueles textos, impregnado de sugestões. Portanto, não é um espetáculo realista, no sentido estrito do termo, mas impressionista, em que os criadores cênicos "traduziram" algumas passagens dos textos e as transformaram na cena concretizada no palco.
Os quadros seguem a ordem em que as lendas aparecem no clássico livro: M´boitatá, de origem indígena; A Salamanca do Jarau, que mescla inspirações árabes e da Península Ibérica à colonização católica do continente sul-americano e, por fim, O negrinho do pastoreio, que traduz a miscigenação entre as tradições africanas e europeias. Na encenação, M´boitatá tem uma forte coreografia, mas talvez poderia ter alcançado maior dramatização se, além das máscaras, a montagem se valesse de bolinhas iluminadas no lugar dos olhos, já que a narrativa se refere ao fogo fátuo que vislumbramos nos campos do Rio Grande do Sul, sobretudo no verão.
No caso da Salamanca do Jarau, a sugestão erótica está evidente, não só na coreografia, mas nos figurinos cor de carne, que destacam, por exemplo, a sequência da sedução. Por fim, O negrinho do pastoreio talvez seja o quadro em que tudo alcançou melhor realização, das cabeças de cavalo metálicas, na sequência da corrida, até o uso da estrutura metálica que ora sugere o formigueiro, ora se transforma numa espécie de pedestal que permite ao negrinho ascender até a Mãe de Deus. A canção entoada então é profundamente emocionante e encerra com fecho de ouro todo o espetáculo que, esperemos, possa ser apresentado mais vezes, e não apenas em Porto Alegre.
Simone Passos, Henrique Ávila, Jeferson Costa, Juli Hoff, Leandro Arrieche, Luana Wrague e Simone Lyrio compõem um elenco que evidencia excelente preparo e formação. O destaque cabe a Henrique Ávila, estreante que interpreta o menino negro: além de simpatia, estava compenetradíssimo e desempenhou excelentemente todos os seus movimentos.
A performance do Tholl evidencia o quanto o material regional pode ser trabalhado, de maneira criativa, permitindo releituras e atualizações. Aliás, não por acaso, em Belo Horizonte, uma ópera foi criada e encenada com base no conto de Guimarães Rosa, A hora e a vez de Augusto Matraga. Uma indústria criativa verdadeiramente criativa não precisa apenas inventar ou criar coisas, mas, sim, propor releituras e novas abordagens de obras já consagradas e conhecidas por todos. A montagem do Tholl mostrou isso com clareza: era hora de um espetáculo deste tipo poder viajar o Brasil e mostrar a amplitude dos temas abordados por Simões Lopes Neto.
Com Lendas do Sul, o recém inaugurado Teatro Simões Lopes Neto, que completa o conjunto de salas do Multipalco, está apresentado ao público. Agora, com as obras de prevenção de incêndio e de acessibilidade recém iniciadas, o Theatro São Pedro transfere sua programação para esta sala. Quando tudo estiver concluído, prevê-se que ainda em 2026, passaremos a ter três belos espaços para espetáculos variados na cidade, num mesmo local. Ganha a cidade, ganham os artistas, ganha o público.