Idealizado a partir do ano passado, quando a opinião pública já acompanhava os procedimentos da Justiça Federal quanto à tentativa de golpe de estado do dia 8 de janeiro, e as reações bolsonaristas que tentam descaracterizar tais atitudes, a montagem de Lady Tempestade é claramente um trabalho militante. Pretende, a partir da dramatização de passagens da advogada pernambucana Mércia Albuquerque, defensora de presos políticos durante a ditadura de 1964, relacionar os dois eventos, mostrando o quanto o Judiciário não deve aceitar a tese de anistia, neste caso específico.
Evidentemente, para os defensores da democracia, este fato, por si só, valorizaria o espetáculo. Na verdade, esta iniciativa não transformaria o trabalho, por si só, em elemento artístico a ser considerado, avaliado e admirado, como o é. A dramatização destes diários, por Sílvia Gomez, e sua transformação em um espetáculo de pouco mais de uma hora de duração, por Yara de Novaes, resultam em uma peça que, sobretudo graças à cenografia de Dina Salem Levy - em especial na passagem final do espetáculo - faz as pessoas se emocionarem profundamente, sintetizando e magnificando a mensagem buscada: tentativa de golpe é crime, porque uma ditadura é sempre crime. Uma ditadura, mais do que matar e fazer desaparecer eventuais culpados - mas, sobretudo, inocentes - tortura e retira a condição humana dos seres humanos, por meio de agentes do sistema ditatorial que, inspiradamente, na peça, são denominados apenas de "gafanhotos".
Para se compreender plenamente esta denominação, há que se lembrar que, isoladamente, um gafanhoto não é perigoso. Mas o gafanhoto sempre se organiza em gigantescas nuvens que às vezes reúnem milhares de animais e, então, sim, tornam-se mortais, dizimando toda e qualquer manifestação de vida existente em seu caminho.
Os personagens que são apenas mencionados enquanto gafanhotos, aqueles que produziram, sustentaram e concretizaram o golpe, amparados na força do grupo, enquanto bandidos, são exatamente isso. E enquanto espetáculo de teatro, a cena final, quando os tapetes do palco são levantados e sob eles encontramos milhares de folhas de papel que são cópias digitalizadas dos processos dos vários acusados, desaparecidos e assassinados pelo regime, consubstancia a denúncia e se torna uma das cenas mais potentes e eficientes, simbolicamente falando, que jamais assisti em uma peça de teatro. É uma sequência simplesmente inesquecível para o resto da vida: evidencia que estamos pisando sobre estas vidas desaparecidas, que o que parece ser natural é, na verdade, um "empurrar para baixo do tapete" - frase da expressão popular que todos conhecemos - que a anistia pode significar, tornando impunes os responsáveis. A antiga anistia já fez isso. O Brasil presente, com jovens que não sofreram aquele episódio e que, portanto, não alcançam a real dimensão da violência então perpetrada contra a sociedade brasileira, precisam conhecer o passado que o 8 de janeiro tentou repetir.
Chico Beltrão, filho de Andréa Beltrão, responde pela trilha sonora. Em cena, enquanto filho da personagem da advogada, ele funciona também como contrarregra e coordena, com seu laptop, toda a distribuição sonora que envolve a plateia, com caixas de som distribuídas pelo teatro.
Lady Tempestade, como a personagem central foi chamada, não é um espetáculo teatral comum: é pura criatividade, é invenção literal do espaço cênico, é o desafio de ultrapassar dimensões temporais e espaciais que acontece bem na frente do espectador, levando-o à experiência radical, porque sobretudo sensorial e emotiva, do que é a violência de uma ditadura.
O desenho de luz de Sarah Salgado e Ricardo Vivian, os figurinos de Maria Salles, a identidade visual de Fábio Arruda e Rodrigo Bleque, tudo torna Lady Tempestade uma experiência rara. Poucas vezes o teatro conseguiu ser tão teatral. Apesar dos gafanhotos.