Quando Puccini faleceu, a imprensa europeia deu grande destaque ao acontecimento, não faltando, porém, jornais que registrassem com certo menosprezo sua figura na história da música, da ópera em particular. Um jornal chegou a escrever que Puccini abandonara a tradição da escola italiana de ópera, sob a influência francesa, mas não alcançara as qualidades da música gálica, e especialmente sobre suas obras finais, o chamado tríptico, falava em "êxito duvidoso". O tríptico é formado por três óperas curtas, Il tabarro (O capote), Suor Angelica (Irmã Angélica) e Gianni Schicchi, neste caso, nome do principal personagem da obra.
Suor Angelica foi recentemente encenada pela Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul, com enorme sucesso. Gianni Schicchi cumpriu temporada neste final de ano. Com a passagem do tempo, estas obras que, evidentemente, não são as mais populares do compositor, tornaram-se, no entanto, representativas, se não da evolução musical do artista, pelo menos da crescente consciência social que o compositor desenvolveu e que, talvez, por isso mesmo, tenha desgostado a alguns críticos.
Suor Angelica é uma evidente crítica aos antigos (nem tão antigos no início do século XX e ainda hoje, infelizmente) costumes de um mundo eminentemente masculino, onde a mulher é apenas uma peça decorativa. O enredo trabalha e denuncia a opressão das jovens, obrigadas a se encerrarem em conventos quando não possuíssem dotes. No caso de Gianni Schicchi, temos uma dupla denúncia: do lado dos querelantes e pretendentes à fortuna do recém falecido, a evidência de seus interesses mesquinhos; do ponto de vista do personagem central, um advogado relativamente inescrupuloso que, menosprezado pelos aristocratas, logo por eles é aceito quando percebem que ele pode atuar em seu favor, revela-se pouco ético, na medida em que, desfazendo-se do documento oficial de herança deixado pelo recém morto, forja um outro, atendendo às demandas dos parentes mas guardando uma parcela das propriedades para si. A diminuir sua evidente manipulação de documentos, fica o fato de que o jovem aristocrata, mas falido, é proibido pela família de casar-se com a filha do advogado, embora os dois jovens se amem, simplesmente porque ela é burguesa, sem tradição de linhagem. Evidentemente que, com as propriedades que o pai se reserva a si, vem junto o nome e a nobreza, o que permitirá o casamento com que o enredo termina e a ópera, curta, de cerca de uma hora de duração, se encerra.
O enredo está baseado no canto XXX da Divina comédia, de Dante Alighieri que se referiria a um episódio real em que a esposa de Dante houvera sido prejudicada por este advogado, também verdadeiro, quando de uma herança. Dante, portanto, critica Schicchi; Puccini é mais equilibrista: critica o advogado, mas reconhece que a burguesia de que ele faz parte constitui a nova classe que se impõe e ocupa o antigo lugar social dos aristocratas. Deve-se lembrar que Puccini, na época, vivia em Nova York, onde a obra estreou, diga-se de passagem.
No papel principal de Gianni Schicchi esteve Vinicius Atique, barítono brasileiro que estreou em 2011 e que vem participando de algumas atividades da Companhia de Ópera: sua voz é muito segura, tem boa presença em cena e facilidade na extensão vocal. A jovem soprano Cecília Salatti interpretou a filha Lauretta, na noite em que assisti ao espetáculo. Já havia destacado sua belíssima voz, muito segura e com excelente potência sonora, e confirmei aqui; seu objeto de amor é o tenor Rinuccio, vivido, na noite a que assisti ao espetáculo, por Matías Herrera, que eu também destacara quando de um espetáculo recente, intermediário do grupo de cantores. Tem muita segurança e excelente impostação, contracenando equilibradamente com sua companheira.
O restante do grupo teve desempenhos variados, valendo sobretudo pelo conjunto, graças ao trabalho de Carlota Albuquerque, responsável pela direção de movimento em cena: o espetáculo, como um todo, graças à direção cênica de Flávio Leite, evidenciou naturalidade, mérito repartido com Eiko Senda, que tem alcançado excelentes resultados com a direção vocal.
Isso justifica a reação embevecida com a conhecida e belíssima ária O mio babbino caro (Ó meu querido papaizinho) que, poucas vezes, identificamos como passagem desta obra, imortalizada por Maria Callas. Cecília Salatti enfrentou com galhardia e muita emoção a ária e sensibilizou a todos nós.