O festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc, manteve uma linha de seleção de peças que repete os anos mais recentes, enfatizando questões LGBT, negritude e feminismo. Ao longo do festival, fiz algumas escolhas de espetáculos a assistir. Fiquei com dois deles, a opereta Cabelos arrepiados, produzido pela Buia Teatro Company, de Manaus (AM), e a estreia de Idade é um sentimento, da canadense Haley McGee, recém-estreada em Londres (2022), para a interpretação central de Gabriela Munhoz, que contracena com Paola Kirst, originalmente apenas a responsável pela trilha sonora, mas que acabou se tornando parceira de cena da personagem que deveria ser a única em cena, e isso porque, nas palavras da própria dramaturga, hoje radicada na Inglaterra, não se trata exatamente de uma peça de teatro, mas um show, e daí a importância da direção de Camila Bauer em optar por incluí-la em cena, tornando-se um amálgama de outras personagens mas, sobretudo, levando a um contraste de emoções que é fundamental para a concretização do texto dramático.
McGee pertence à geração de novíssimos dramaturgos (não há nenhum site que indique sua data de nascimento); além de escritora, aliás, ela é atriz e performer, o que significa que, ao escrever, está pressupondo sua própria interpretação, como ocorreu com a obra de estreia, A venda de garagem do ex-namorado, alusão à prática de vendas caseiras que se faz de objetos pessoais dos quais se pretende livrar, alcançando, ao mesmo tempo, um dinheirinho. Esta prática é antiga nos Estados Unidos e no Canadá e hoje em dia, com as redes sociais, foi ainda mais incrementada.
Sem querer cair no clichê, Idade é um sentimento é uma peça nitidamente de tese, feminista, mas com uma nova dicção, sem coitadismos, animada por uma comicidade que não deixa de denunciar e de criticar e que, por isso mesmo, se torna extremamente eficiente em seus objetivos.
O texto encontra esta mulher, no dia de comemoração da passagem de seus 25 anos e, passando a palavra à personagem, faz com que ela, aos saltos, apresente fragmentos de sua vida, até a morte, em torno dos 90 anos. Uma autobiografia possível, diríamos, lembrando que o gênero biografia/autobiografia é o que mais vende em todo o mundo (inclusive no Brasil). Mas, seguindo Pierre Bourdieu, é bom lembrar que uma (auto)biografia é um engodo: não se pode contar/saber tudo sobre a vida de alguém. Mesmo que se pudesse ser testemunha ocular de tudo o que lhe ocorresse.
Assim, dramaticamente, Haley McGee faz com que a plateia selecione, a cada performance, algumas - jamais todas - passagens da vida da personagem. O roteiro nos leva, de qualquer modo, ao final, à morte e, de certo modo, a uma tentativa de apreensão do significado da vida daquela mulher. Mas é tudo sempre precário, parcial: ninguém, nem mesmo a própria personagem, consegue abarcar sua vida por inteiro. A precariedade é, assim, a marca da narrativa que, deste modo, permite que o público acompanhe cada momento da vida da personagem, suas opções, os acasos e/ou decisões por determinadas ações, inclusive a compreensão do sentimento amoroso e da realização pessoal, tentando dar-lhe sentido(s).
A direção de Camila Bauer valorizou a potencialidade da atriz: Gabriela Munhoz é uma extraordinária intérprete, que incorpora a personagem. Aliás, comprando os direitos autorais da obra e revelando-a no Brasil, ela está a evidenciar o quanto está envolvida com este projeto. Camila é a personagem e vice-versa, sem que a personagem seja a autobiografia da atriz. Encontrar Paola Kirst foi um achado: música, compositora, ela se revelou uma atriz de extraordinária qualidade, numa contracenação perfeita. O trabalho de Carlota Albuquerque, na direção de movimento, permitiu uma vitalidade que poucas vezes se vê em cena, hoje em dia. A cenografia de Elcio Rossini e, sobretudo, os vídeos combinados com os elementos de cena produziram efeitos excelentes, de profundidade e de eternidade impressionantes, valorizados com a iluminação de Ricardo Vivian. O uso de microfones, por um lado, concretiza a ideia de "show" da dramaturga, embora por vezes atrapalhe um pouco a mobilidade da atriz, mas isso não tem solução, resulta das opções da encenação.
Idade é um sentimento, em síntese, é dos textos mais interessantes da temporada e resultou num dos espetáculos mais impactantes deste ano. Que bom, o teatro ainda está vivo.