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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 11 de Abril de 2024 às 18:36

Morreu o gênio de Flicts

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Antonio Hohlfeldt
As pessoas que viveram os anos 1960 e 1970 têm enfrentado, semanalmente, a informação sobre a morte de alguns dos artistas icônicos da época, seja da música, do teatro, da literatura, ou lideranças políticas ou sociais. No final da semana passada, foi a vez de perdermos a figura de Ziraldo, mineiro do interior, que se celebrizou por um sem-número de iniciativas, o que, por si só, mostra sua importância para nossa cultura.
As pessoas que viveram os anos 1960 e 1970 têm enfrentado, semanalmente, a informação sobre a morte de alguns dos artistas icônicos da época, seja da música, do teatro, da literatura, ou lideranças políticas ou sociais. No final da semana passada, foi a vez de perdermos a figura de Ziraldo, mineiro do interior, que se celebrizou por um sem-número de iniciativas, o que, por si só, mostra sua importância para nossa cultura.
Pessoalmente, meu primeiro encontro com Ziraldo deu-se através dos gibis: deliciei-me com os quadrinhos da Turma do Pererê, primeira tentativa profissional de criar histórias em quadrinhos brasileiras, com personagens brasileiros, no caso, oriundos do interior do País, da roça, como se dizia então, criadas a partir de figuras do folclore nacional, como o coelho, a tartaruga, o fazendeiro explorador ou o camponês explorado.
Ziraldo viria a se celebrizar com o livro O Menino Maluquinho: aliás, a melhor capa de jornal a registrar a morte de Ziraldo foi justamente a do Correio de Minas, que relembrou a frase com que a história se encerava, referindo que o "menino maluquinho" tinha sido apenas "um menino feliz".
Meu segundo encontro com Ziraldo aconteceu no palco, quando a diretora Maria Helena Lopes estreou uma transposição do livro Flicts, que cumpriu temporada num teatrinho simpático do Círculo Social Israelita. A encenação porto-alegrense - a primeira, porque mais tarde haveria uma produção paulistana - surpreendeu e encantou a todos que a assistiram, primeiro, pelo encantamento da história criada por Ziraldo e, depois, pela poética recriação alcançada por Maria Helena.
A convivência entre as cores diferentes metaforizava a necessidade de as diferentes etnias, diferentes nacionalidades, diferentes tipos de pessoas conviverem com tranquilidade. Adiantando-se, em muito, ao debate de temas que se tornariam, nas décadas seguintes, questões fulcrais na sociedade humana, Ziraldo falava de empatia, de civilidade, de respeito ao outro e de respeito às diferenças. Aliás, esta era uma das contribuições mais definitivas de Ziraldo: ele era capaz de antecipar-se às questões, abordá-las desde um ponto de vista inovador, simples e objetivo, ao mesmo tempo poético e leve, botando o dedo na ferida, mas sem acusações.
Flicts nunca me saiu da lembrança, nunca me deixou a cabeça. Por isso, em que pese o sucesso de O Menino Maluquinho, o meu Ziraldo é aquele de Flicts, inclusive pela criação de uma palavra, de um nome onomatopaico que, por não significar nada, estrita e dicionaristicamente falando, por isso mesmo poderia significar tudo.
Foi também significativo que a jovem diretora e realizadora Maria Helena Lopes, com um elenco ainda mais jovem, assumisse a tarefa de levar ao palco esta narrativa: ampliava-se, aqui, a interdisciplinariedade de que muitas vezes o artista se valeu para concretizar seu trabalho. Se o Flicts original juntava a literatura e as artes plásticas (cada personagem era uma cor), com a transposição do livro para o teatro somava-se uma outra linguagem, a linguagem cênica que, por seu lado, reunia, além da arte da encenação propriamente dita (o arte seus gestos e movimentos), a trilha sonora (música), a cenografia (outra aspecto das artes plásticas) e os figurinos (ainda as artes plásticas), ou seja, tinha-se em cena uma simbiose de linguagens que ampliavam ainda mais os significados da obra de Ziraldo. Confesso que, ao longo de tantos anos assistindo a espetáculos e escrevendo sobre eles, poucas vezes tive impacto tão forte e guardei lembrança tão positiva de um trabalho de palco quanto daquela encenação. Por tudo, e isso tudo inclui muito especialmente a criação de Ziraldo.
Ziraldo não se escorou na fama para declinar da responsabilidade social. Assumiu com clareza posições contrárias à ditadura. Experimentou enfrentamentos criativamente renovados, com a participação na turma do Pasquim, no qual atuou durante muito tempo; organizou exposições, publicou dezenas de obras, preocupou-se em divulgar a Declaração dos Direitos do Homem em edições feitas especialmente para crianças, graças às suas ilustrações. Seu traço leve, mas firme, sua rápida apreensão do que era a essência do tema, seu bom humor, tudo traduziu uma personalidade ímpar ao grande artista mineiro. Ele sim, com certeza, pode ser caracterizado de gênio.
 

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