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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 04 de Abril de 2024 às 18:16

Erasmo e sua loucura

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Antonio Hohlfeldt
A simples ideia de transpor um livro de referência, como O elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam, para o teatro, deve ser elogiada. Isso não quer dizer que a empreitada não esteja isenta de perigos.
A simples ideia de transpor um livro de referência, como O elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam, para o teatro, deve ser elogiada. Isso não quer dizer que a empreitada não esteja isenta de perigos.
No caso da atriz Leona Cavalli e do diretor Eduardo Figueiredo, que assinam a dramaturgia, não foi diferente. Não obstante, o resultado acaba sendo bastante positivo, sobretudo graças às qualidades de atriz da intérprete solo. Deve-se registrar, igualmente, o cuidado com a ambientação cênica e, sobretudo, o figurino da personagem, em especial o manto que ela porta, simplesmente admirável.
Erasmo de Rotterdam foi uma figura verdadeiramente revolucionária, tanto em seu tempo (166-1536), quanto ainda hoje em dia, bastando lembrar-se que ele deve ter sido o primeiro pensador a defender a Comunidade Europeia, assim como ela se apresenta hoje em dia, propondo a abolição das nacionalidades. Aliás, ele próprio, de certo modo, viveu esta experiência, pois sua vida se deu através de diferentes países, inclusive Inglaterra, ao tempo de Henrique III, e França. Foi amigo pessoal de Thomas More e foi em sua casa, em fins de 1508, em apenas quatro dias, que compôs todo o texto de O elogio da loucura, publicado no ano seguinte e, em seguida, alcançando traduções em diferentes idiomas. Erasmo, embora sacerdote, católico, foi crítico da Igreja, enquanto instituição, e do Papado, aproximando-se das ideias de Lutero. Embora pressionado, tanto por Roma quanto pelos protestantes, no sentido de se definir por uma outra posição, manteve-se sempre independente, e isso o faz ainda mais respeitável ao dias de então, como hoje em dia.
, em sua concepção e em suas reflexões, antecipa, de certo modo, o clima renascentista da valorização da quebra dos limites e da valorização de uma outra razão que não aquela escolástica, inspirada por Deus, mas bem mais humana (humanística, diríamos hoje em dia). É assim desde o título da obra, bela e jocosa criação (o significado do nome de seu amigo Thomas More tem a ver com a expressão real "moria", que se pode traduzir por "loucura"). Mas a "loucura" referida por Erasmo não é exatamente o desvario mas sim, a estultícia, a insensatez, a irracionalidade, sobretudo a vaidade humana. É sobre isso que ele escreve e é isso que ele critica acertadamente, com um texto que acabou encontrando grande repercussão popular, tornando-se, ainda em seu tempo, um sucesso mesmo entre as pessoas mais simples.
A transposição da obra de Erasmo para o palco segue, basicamente, o texto do autor, embora, em algum momento, a personagem permita-se alguma liberdade na referencialidade das palavras utilizadas para fazer alusões à realidade brasileira mais imediata, ela própria, aliás, absolutamente caracterizável por ser "uma loucura".
Com pouco mais de uma hora de duração, o espetáculo não é equilibrado, do ponto de vista dos resultados da transposição cênica. Há grandes momentos, como pelo menos a meia hora inicial, e para isso, o jogo cênico é extremamente importante, porque valoriza o texto. Mas há, também, passagens em que o espetáculo cai de interesse, valendo, então, a qualidade interpretativa de Leona Cavalli, uma atriz gaúcha, nascida em Rosário do Sul, originalmente batizada como Alleyona Canedo da Silva e que, muito jovem, decidiu-se por ser atriz, migrando para São Paulo, onde desenvolveu carreira e alcançou uma coleção invejável de prêmios, tanto no teatro, quanto no cinema e na televisão, o que não deixa dúvidas quanto às suas aptidões.
Dentre os méritos do trabalho, deve-se destacar, ainda, a presença da trilha sonora ao vivo, nas interpretações, excelentes, de Rafa Ducelli e Cika, que servem, inclusive, de contrarregras para a personagem, criando uma interação que dá maior dinamismo ao espetáculo.
Em suma, sem ser um espetáculo perfeito, é um excelente trabalho, a ser obrigatoriamente admirado e valorizado. Que bom que entre as novas gerações haja quem seja capaz de valorizar textos de tantos séculos antes que, não obstante, continuem atuais e, por isso mesmo, importantes.
 

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