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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 25 de Março de 2024 às 16:45

Aplausos de pé para Brenda Lee e suas companheiras

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Antonio Hohlfeldt
Por volta de 2012, o festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc nacional, trouxe a peça denominada Luiz Antonio Gabriela, com texto de Nelson Baskerville, também seu diretor, a respeito de um travesti assassinado. O espetáculo me impactou fortemente, e inclusive escrevi que a peça deveria retornar ao festival no ano seguinte, o que, para minha alegria, acabou ocorrendo. Alguns anos depois, numa banca de revistas, em plena Avenida Paulista, descubro uma edição quase artesanal da obra, que imediatamente comprei. Neste momento, oriento uma tese de doutorado sobre textos dramáticos documentais em que incluí este trabalho como parte de seu corpus.
Por volta de 2012, o festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc nacional, trouxe a peça denominada Luiz Antonio Gabriela, com texto de Nelson Baskerville, também seu diretor, a respeito de um travesti assassinado. O espetáculo me impactou fortemente, e inclusive escrevi que a peça deveria retornar ao festival no ano seguinte, o que, para minha alegria, acabou ocorrendo. Alguns anos depois, numa banca de revistas, em plena Avenida Paulista, descubro uma edição quase artesanal da obra, que imediatamente comprei. Neste momento, oriento uma tese de doutorado sobre textos dramáticos documentais em que incluí este trabalho como parte de seu corpus.
Tudo isso lembrei quando terminei de assistir, emocionado, ao musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas, na programação do 30º Porto Alegre em Cena, o mais tradicional e importante festival de artes cênicas que temos em Porto Alegre. Trata-se de um musical, dirigido por Zé Henrique de Paula, que também assina os figurinos, a partir de dramaturgia de Fernanda Maia, também autora das letras das composições. Duas horas de espetáculo, em dois atos, e a gente sai querendo mais. O trabalho conta a história - real - de Cícero Caetano Leonardo, nascido em Bocodó (Pernambuco), que veio para as ruas de São Paulo para sobreviver, prostituindo-se, pois era travesti e foi expulso da família e da cidade. Tornou-se Caetana, uma relativamente bem sucedida artista deste segmento normalmente marginalizado da sociedade, ainda que boa parte dela a frequente e consuma, embora às escondidas, ao criar uma espécie de clube e boate chamada Palácio das Princesas, com espetáculos transgêneros. A constante incidência de doenças entre as travestis, porém, faz com que Brenda Lee - que assume este nome artístico na casa - se obrigue a levar as artistas ao posto de saúde e aos hospitais públicos, onde sempre são mal tratadas e humilhadas. Surge a figura do médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira (humanamente vivido pelo ator Fábio Redkovski), que propõe tratar as pacientes em casa, para o que Brenda Lee cede seu próprio quarto de dormir. Brenda Lee foi assassinada em 1996, mas deixou um legado desta primeira casa de apoio às travestis atacados de HIV, desenvolvida por uma de suas pupilas, Blanche de Niège.
O gênero musical, em geral, tem sido considerado mero divertimento, o que não é princípio de julgamento mas, às vezes, indica preconceito, tornando-o um gênero menor. Na verdade, nunca foi, e basta lembrar um filme como Cabaret, com Liza Minnelli, para comprovarmos isso. Cito propositadamente Liza Minnelli porque a personagem Cynthia Minnelli, que reparte com Brenda Lee o peso do enredo, é justamente uma artista travesti que tem como referência aquela figura, a quem tenta emular. A seu lado, e logo na abertura do espetáculo, as figuras de Ariela del Mare, que sonha viajar para a Itália para uma troca de sexo; Blanche de Niège (referência a Blanche du Bois, de Tennessee Williams), inicialmente drogada e recuperada por Brenda a ponto de se tornar sua herdeira; e Raíssa.
A estrutura cenográfica (de Bruno Anselmo, excelente) se dá em diferentes planos, e permite, com a música de Rafa Miranda, um ritmo acelerado do espetáculo; a coreografia de Gabriel Melo é absolutamente perfeita e fielmente realizada por todas as intérpretes. O resultado é um valiosíssimo documentário e depoimento a respeito das condições de preconceito e marginalização experimentadas pelas travestis mas, ao mesmo tempo, fixa a história verdadeira sobre como se estabeleceram as primeiras políticas públicas em favor dessas personagens. De outro lado, enquanto gênero dramático e espetáculo, é extraordinariamente bem realizado, desde a concepção do roteiro até as interpretações: até mesmo os poucos "escorregões" melodramáticos acabam ganhando lógica e organicidade pela concepção do espetáculo, culminando na cena apoteótica do final, um "happy end" histórico que, longe de se tornar artificial, ilustra à perfeição a importância dos fatos que acabaram de ser narrados.
Não foi por acaso que o espetáculo, ao final, foi aplaudido com apoteose, e o Theatro São Pedro viveu duas grandes noites, evidenciando a importância de se trazer trabalhos como este do Núcleo Experimental de São Paulo. Tenho certeza que Dona Eva aplaudiria de pé, como eu, este trabalho.
 

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