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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 21 de Março de 2024 às 19:34

Quem diria, estamos reencontrando a ópera

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Antonio Hohlfeldt
A estreia da ópera Os palhaços, de Ruggero Leoncavallo, traz-nos uma série de questões interessantes para a experiência deste tipo de gênero dramático-musical.
A estreia da ópera Os palhaços, de Ruggero Leoncavallo, traz-nos uma série de questões interessantes para a experiência deste tipo de gênero dramático-musical.
Estreada em 1892, a obra propõe uma reflexão crítica sobre o gênero operístico e sobre a tradição estilística. Leoncavallo está consciente de quebrar certa tradição romântica, com seu libreto, propondo um enredo que, embora tradicional, precisa ser relido: para isso, ele inscreve o enredo do crime de assassinato dentro de um segundo enredo: o libreto, assim, explora a tradição da traição permitida, na commedia dell' arte, porque tudo não passaria de uma confusão ou de um mal-entendido (Arlequim e Colombina que aparentemente traem Pierrot) para atualizá-la no crime por amor, então muito comum sobretudo nas regiões rurais.
Sensível ao problema da atualidade, o diretor de cena e de concepção do espetáculo, Flávio Leite, oportunamente, contextualiza o acontecimento no Brasil contemporâneo, referindo, na legenda final do espetáculo, o número de feminicídios ocorridos no Brasil no ano passado. Com isso, o libreto de Leoncavallo dá um salto de mais de um século e ganha uma atualidade surpreendente e verdadeiramente trágica.
Mas não é só este mérito (enorme) que a encenação proposta pela Ospa, sob a regência do sempre correto e equilibrado maestro Evandro Matté apresenta: o metteur en scène Flávio Leite inspira-se no fato de o enredo desenrolar-se no âmbito de um circo, para trazer a experiência de um grupo artístico excepcional, o Grupo Tholl, de Pelotas, para enriquecer o espetáculo. Com isso, fecha-se um círculo virtuoso que explica porque, ao final do espetáculo de duas horas de duração, em dois atos, empolga e emociona a plateia - que lotou o Theatro São Pedro (TSP) em suas três récitas. O enredo é atualizado com os dados sociológicos apresentados, sem afetar seu desenvolvimento dramático, antes ampliando-o, do mesmo modo que a perspectiva estilística é sensivelmente ampliada com a participação deste grupo circense do sul do estado que se constitui, simultaneamente, numa militância de assistência social, tanto quanto de pesquisa artística inexcedível.
A montagem, que abriu as comemorações do centenário de Eva Sopher e os festejos dos 165 anos do TSP, cumpriu sua tarefa com responsabilidade maiúscula. Deve-se destacar que a Companhia de Ópera, agora, se encontra constituída formalmente enquanto entidade legal, com diretoria e estatutos. Outro passo importante foi esta aproximação entre a Ospa - uma orquestra, cm seus músicos e coro - e a CORS - companhia de cantores de ópera.
Formou-se o conjunto perfeito para a realização de tal tipo de espetáculo que tem seu público cativo, sim, e em número ascendente, dentre outros motivos, pela inovação de linguagem das encenações, pela novidade de os intérpretes se distanciarem cada vez mais daqueles estereótipos de prima dona do século XIX, aproximando-se do cidadão comum; com o cuidado com a direção dramática dos espetáculos, tornando a gesticulação mais natural, também contribui para a qualidade musical do intérprete.
Nesta encenação de Os palhaços chama sobretudo a atenção o fato de cada personagem dispor de dois diferentes intérpretes, o que faz pressupor a disponibilidade de artistas de qualidade semelhante, cuja alternância em nada diminui a performance da encenação. Assim, na récita de estreia tivemos Lazlo Bonilla, como o palhaço Canio; Eiko Senda, como Nedda; Daniel Germano, como Tônio e Carlos Rodriguez, como Silvio. Mas cada um deles poderia ser substituído, respectivamente, por Giovanni Marquezeli, Maria Sole Gallevi, Roger Nunez ou Alex Barbosa, respectivamente, o que evidencia a dinâmica da companhia e sua vitalidade.
A cenografia de Rodrigo Shalako, conseguiu resolver bem o desafio de colocar todo o espetáculo dentro do espaço cênico do teatro; os figurinos vieram todos do acervo do grupo Tholl, o que lhe deu verossimilhança; por fim, a iluminação de Veridiana Martins permitiu transformações de clima importantes. Quem diria, Porto Alegre começa a reencontrar a ópera...
 

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