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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 14 de Março de 2024 às 17:30

Irene Ravache homenageia o teatro em seus 80 anos

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Antonio Hohlfeldt
A escolha da atriz Irene Ravache por completar seus 80 anos de idade em plena temporada de um espetáculo teatral é, certamente, a melhor demonstração de amor pela arte que abraçou, como revela, ao longo de 65 anos de sua vida. Por outro lado, escolher Porto Alegre como uma das cidades que visitaria, através do Theatro São Pedro, é, igualmente, como ela também afirma, um gesto de carinho especial para uma casa de espetáculos que tem recebido os principais ícones do teatro brasileiro.
A escolha da atriz Irene Ravache por completar seus 80 anos de idade em plena temporada de um espetáculo teatral é, certamente, a melhor demonstração de amor pela arte que abraçou, como revela, ao longo de 65 anos de sua vida. Por outro lado, escolher Porto Alegre como uma das cidades que visitaria, através do Theatro São Pedro, é, igualmente, como ela também afirma, um gesto de carinho especial para uma casa de espetáculos que tem recebido os principais ícones do teatro brasileiro.
Irene Ravache não decepciona. Durante cerca de hora e meia de Alma despejada, seu espetáculo solo desliza com naturalidade: a atriz passa do intimismo a uma interpretação histriônica com a maior naturalidade. O cenário de Fábio Namatame é de bom gosto e traduz com fidelidade uma classe média brasileira que a própria personagem denomina como nouveau riche, já que a ação se estende entre os anos 1950 e 1990, com rápidas alusões a ocorrências políticas e sociais do País, embora sem a profundidade e criticidade que seria de se desejar. A exceção fica com a passagem de corrupção entre políticos e empresários, que alude indiretamente ao segundo mandato de Lula. O figurino, assinado pelo mesmo Fábio Namatame, nos coloca diante de uma mulher sem maiores vaidades, quer em vida, quer agora que, após a morte, revisita sua antiga habitação. A narrativa é realçada por uma trilha sonora pontual, para mim pouco incisiva, de Daniel Grejew e George Freire, que nem recupera as tonalidades de época, nem se define por um clima romântico ou realista, o que poderia ajudar a melhor qualificar o texto.
Irene é admirável intérprete. Não titubeia, mantém o ritmo, avança com segurança, e o tom de coloquialidade é tal que parece ser a intérprete a personagem, a conversar com toda a plateia. O título da obra é inteligente por sua ambiguidade: alude ao fato imediato, ao nível do enredo, de que o apartamento está sendo vendido, após a morte da mulher, pelo viúvo e os dois filhos; mas, ao mesmo tempo, faz referência indireta a alguns anos antes, quando o marido confessa seu envolvimento com a corrupção que tem marcado as últimas décadas de história brasileira.
Reitero: ter a chance de admirar e aplaudir a interpretação inesquecível de Irene Ravache já justifica ir ao teatro. Mas confesso que saí frustrado com o texto. Não entendi como recebeu o Prêmio Bibi Ferreira como melhor texto dramático, porque um dos primeiros problemas que ele enfrenta é, justamente, a falta de dramaticidade. Teresa, a personagem falecida da peça, é uma lamentável mulher alienada, em todos os sentidos, em sua classe social, como conhecemos tantas e tantas. Até aí, tudo certo: o problema é que o texto, em momento algum, faz qualquer reflexão crítica a respeito desta condição, nem mesmo quando ela descobre os desvios do marido. Como fizera ao longo de toda a vida, "desviava" para não enfrentar qualquer problema (a metáfora é horrorosa, "desviava" na vida privada como "desviava" quando topava com um indigente na rua), e "desviou" quando o marido confessou seus erros: apenas ficou "com raiva" porque quebrou seu dolce far niente. Aliás, em plena ditadura, relembra, com frivolidade, que conseguiu convencer o marido a levá-la a Paris... Mais grave, é quando, prematuramente (verifica-se isso depois), absolve o marido por ter-se tornado rico: ele trabalhou muito, era sério, sempre pagou impostos... Depois se descobre que não era nada disso, ainda que sua prevaricação seja imputada à amizade de um colega de escola que se meteu na política. Aliás, a condenação generalizada dos políticos é de um equívoco lamentável, assim como é erro primário afirmar que a personagem morre numa terça feira de carnaval, no início da Voz do Brasil, ao som da protofonia de O Guarani: nunca ouvi dizer que o programa oficial acontecesse em feriado...
Como disse, valeu por Irene Ravache. Ela é parte da história do teatro brasileiro. Sua contribuição é admirável, desde sua estreia, em 1962. Nunca mais parou, atuando no teatro, no cinema e na televisão. Integrante do CPC da UNE, intérprete de textos de Maria Adelaide Amaral, contracenando com Paulo Autran ou Juca de Oliveira, às vezes até ousando tornar-se diretora, Irene Ravache tem sido uma trabalhadora das artes cênicas e assim deve ser reconhecida e homenageada.

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