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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 29 de Fevereiro de 2024 às 22:04

Extensões negadas de nós mesmos

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Antonio Hohlfeldt
O diretor Luciano Alabarse vem produzindo, quantitativa e qualitativamente, de maneira profusa nos últimos anos. Em 2023, foram pelo menos dois espetáculos por ele dirigidos, e mal iniciamos o novo ano e ele nos surge com outro trabalho de criação, para além da direção, propriamente dita, porque, neste caso, ele se traveste inclusive de dramaturgista, na medida em que parte de dois diferentes textos dramáticos absolutamente contemporâneos e, mesclando-os, cria seu próprio texto, em que contribui duplamente, com o texto propriamente dito e com uma leitura de diretor, uma tarefa enriquecendo e ampliando a outra. O resultado é um espetáculo de quase duas horas de duração, que tem todas as qualidades e todos os defeitos daquilo que é a principal característica do artista: ele não tem medo de experimentar e de ousar, corre riscos de vertigem e, na medida em que busca romper os limites, acerta em pontos cruciais e por vezes perde-se em alguns excessos. De qualquer modo, assistir a Sangue e pudins é uma provocação, no melhor sentido: provocação que Alabarse faz a si mesmo e ao público, de modo a não deixar ninguém se sentir confortável com a etapa atingida, puxar o tapete e obrigar o espectador (como ele próprio, diretor) a repensar a realidade e seu entorno e enfrentar - se possível alargando - a experiência empírica do que seja o teatro para o século XXI.
O diretor Luciano Alabarse vem produzindo, quantitativa e qualitativamente, de maneira profusa nos últimos anos. Em 2023, foram pelo menos dois espetáculos por ele dirigidos, e mal iniciamos o novo ano e ele nos surge com outro trabalho de criação, para além da direção, propriamente dita, porque, neste caso, ele se traveste inclusive de dramaturgista, na medida em que parte de dois diferentes textos dramáticos absolutamente contemporâneos e, mesclando-os, cria seu próprio texto, em que contribui duplamente, com o texto propriamente dito e com uma leitura de diretor, uma tarefa enriquecendo e ampliando a outra. O resultado é um espetáculo de quase duas horas de duração, que tem todas as qualidades e todos os defeitos daquilo que é a principal característica do artista: ele não tem medo de experimentar e de ousar, corre riscos de vertigem e, na medida em que busca romper os limites, acerta em pontos cruciais e por vezes perde-se em alguns excessos. De qualquer modo, assistir a Sangue e pudins é uma provocação, no melhor sentido: provocação que Alabarse faz a si mesmo e ao público, de modo a não deixar ninguém se sentir confortável com a etapa atingida, puxar o tapete e obrigar o espectador (como ele próprio, diretor) a repensar a realidade e seu entorno e enfrentar - se possível alargando - a experiência empírica do que seja o teatro para o século XXI.
Sangue e pudins se origina de um texto do dramaturgo inglês Mark Ravenhill (1966), Shopping and fucking, e de outro trabalho do norte-americano Brontez Purnell, Johnny, você me amaria se o meu pau fosse maior?; se o texto de Ravenhill está impresso no primeiro volume de suas Plays, de 2001, Brontez Purnell foi considerado pelo New York Times, em 2018, um dos 32 mais importantes escritores negros do mundo. Faço estas referências para, em primeiro lugar, mostrar que Alabarse está buscando manter-se up to date em relação à dramaturgia internacional, permitindo que o público porto-alegrense, em primeiro lugar, o sul-rio-grandense e, quem sabe, em breve o brasileiro, tenha a oportunidade de atualizar-se a respeito do que se escreve e encena nos palcos ocidentais.
O espetáculo é rigoroso em sua fragmentação pós-modernista, o que não impede alguns excessos como a incidência, para meu gosto, demasiada de canções (quase desviando a encenação para o gênero musical, o que não é uma avaliação de qualidade mas sim, de quebra de unidade de linguagem), por mais que se possam admirar as qualidades de Li Pereira, dublador e performer, ele mesmo, enquanto o personagem Mark.
Embora não seja fundamental, há algumas passagens que podem, claramente, ser vinculadas a este ou àquele texto, como, por exemplo, o personagem Gary, vivido por Elison Couto, que imagino ser original da peça de Purnell, do mesmo modo que Brian, interpretado por Pingo Alabarce, enquanto as figuras de Lulu (Angela Spiazi) e Robbie (Jaques Machado) sugerem origem no texto do inglês Ravenhill. Isso implica em alguma hierarquia ou avaliação qualitativa? Não, mas para o interessado em criação dramática, pode permitir uma reflexão a respeito do modo pelo qual um diretor se apropria do texto, transformando-o, enfatizando-o ou relacionando-o com a realidade imediata ou com outras realidades circunstanciais.
Não é exatamente o tipo de espetáculo de que gosto, com sinceridade, e disse isso ao próprio Alabarse. Mas isso não me impede de admirar o cuidado da produção. Como sempre, Alabarse assina o cenário e a trilha sonora (os espetáculos de Luciano, sem suas trilhas sonoras, não existem); como um sempre excelente diretor de ator, ele é meticuloso na caracterização das figuras em cena, através daquele cenário, e dos figurinos (escolhas do grupo), para além das coreografias de Angela Spiazzi. O resultado é um conjunto impactante de figuras meio fantasmais, derrotadas mas perseverantes, que ousam constituir seus próprios destinos. E assim, justamente por poder me manter distante do espetáculo, me emociono com ele: esta espécie de voragem que engole aquelas figuras no palco, devolvendo-nos personagens que somos nós mesmos, obrigando-nos a nos perguntar a respeito e a nos reconhecer nelas, enquanto nossas extensões (mesmo que negadas).

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