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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 22 de Fevereiro de 2024 às 17:33

O legado de Sena precisa ser resgatado e valorizado

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Antonio Hohlfeldt
O falecimento de Antonio Carlos de Sena, há duas semanas, além da tristeza natural provocada pelo afastamento de um artista respeitado e de um amigo, em particular, a quem admirava muito, é oportunidade para a gente refletir sobre como as coisas, no Brasil, raramente alcançam apoio oficial, sobrevivendo às expensas e por iniciativa de particulares.
O falecimento de Antonio Carlos de Sena, há duas semanas, além da tristeza natural provocada pelo afastamento de um artista respeitado e de um amigo, em particular, a quem admirava muito, é oportunidade para a gente refletir sobre como as coisas, no Brasil, raramente alcançam apoio oficial, sobrevivendo às expensas e por iniciativa de particulares.
Sena está diretamente vinculado a dois diferentes, mas paralelos momentos da história do teatro e da dramaturgia brasileiros. De um lado, a criação, por ele e sua família, do TIM - Teatro Infantil de Marionetes, talvez o grupo de teatro de bonecos mais antigo do País, com as primeiras performances oficiais entre 1954 e 1959. De outro lado, Antonio Carlos de Sena teve a iniciativa de montar o primeiro espetáculo teatral que trouxe à cena os até então pouquíssimo conhecidos e quase sempre desvalorizados textos do dramaturgo sul-rio-grandense, natural de Triunfo, Qorpo Santo, José Joaquim de Campos Leão. Por sua iniciativa, um primeiro espetáculo aconteceu no ano de 1966, no Clube de Cultura, em Porto Alegre, trazendo três textos do até então ignorado dramaturgo: As relações naturais, Eu sou vida, eu não sou morte e Mateus e Mateusa, até hoje, uns dos textos mais referidos e escolhidos para antologias em todo o País. A encenação chamou a atenção do crítico carioca Yan Michalski, que reconhecia ser Qorpo Santo provável antecessor do chamado teatro do absurdo, e assim, a tradição incorporou aquele criador sul-rio-grandense, retirando-o do ostracismo. Aliás, teorias atuais ligariam Qorpo Santo mais ao surrealismo do que ao absurdo, propriamente dito.
No caso do teatro de marionetes, foi a partir de experiência da mãe, Dona Odila, formada em Artes Plásticas e professora primária, que o grupo se constituiu, com toda a família participando do experimento. Um importante texto, fixado pelo também animador Paulo Balardim, recolheu depoimento de Antonio Carlos de Sena, em que ele rememora tais acontecimentos. Indo no início dos anos 1960 para São Paulo, onde estreia na televisão, e depois se incorporando à programação da TV Piratini, em Porto Alegre, com dois espetáculos semanais, o TIM se tornou conhecido, inspirou outros artistas e participou, sucessivamente, da criação da Associação Brasileira (ABTB) e Gaúcha de Teatro de Bonecos (AGTB). O acervo do TIM reúne mais de 80 bonecos e cerca de 60 textos dramáticos. Atacado pelo Alzheimer, Sena já há alguns anos estava afastado de suas atividades.
Mas ele teve também esta participação pioneira em relação a Qorpo Santo. Com formação em direção teatral pelo DAD - Departamento de Arte Dramática da Ufrgs (1962), ele tentou, sem sucesso, realizar o espetáculo com os textos de Qorpo Santo, textos estes descobertos por seu amigo e colega cineasta Aníbal Damasceno Ferreira, na própria escola. Tomou, então, a iniciativa de montar seu próprio espetáculo, e com um elenco relativamente jovem. Regina Vianna, Mila Cibele, Aparecida Dutra, Vaniá Brown, Raquel Marcovici, José Gonçalves, Marcos Wainberg e Marcos Schames: eis os nomes dos intérpretes (obrigado, meu amigo Renato Rosa): Regina seguiria para o centro do País (faleceu nesta semana, segundo o mesmo Renato); Aparecida fez carreira brilhante no teatro e no cinema; Raquel se tornaria publicitária e ajudou muito ao Grupo de Teatro Província; Vaniá mudou-se para Rio Grande, onde continuou fazendo algum teatro; José Gonçalves, Wainberg e Schames seguiriam, de fato, carreiras no teatro.
Sena foi sempre um pioneiro. Participou do início do Festival Internacional do Teatro de Bonecos, de Canela, assim como o pernambucano Hermilo Borba Filho, conterrâneo e contemporâneo de Ariano Suassuna, de quem foi amigo e companheiro de trabalho.
Mas a morte dele não pode apenas nos deixar tristes. Temos que assumir sua tocha iluminadora e desbravadora de caminhos: garantir a sobrevivência de seu acervo de bonecos e de textos, garantir o reconhecimento de seu nome na história deste tipo de teatro e, por consequência, de todo o teatro brasileiro. Homem que sempre falou baixo, que sempre exalou humildade, Antonio Carlos de Sena, com seu jeito tímido, foi profundamente resiliente e persistente. Por isso mesmo deixa um legado respeitável, que não se pode perder.
 

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