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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 07 de Dezembro de 2023 às 18:00

Necessária revisão da dramaturgia

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Antonio Hohlfeldt
A falecida, de 1953, marcou uma espécie de turning point na dramaturgia de Nelson Rodrigues. O escritor abandonava seus personagens míticos e simbólicos e começava a trabalhar com figuras localizadas no tempo e no espaço, notadamente na Zona Norte do Rio de Janeiro, nos anos 1950, ou seja, tempo contemporâneo ao próprio dramaturgo.
A falecida, de 1953, marcou uma espécie de turning point na dramaturgia de Nelson Rodrigues. O escritor abandonava seus personagens míticos e simbólicos e começava a trabalhar com figuras localizadas no tempo e no espaço, notadamente na Zona Norte do Rio de Janeiro, nos anos 1950, ou seja, tempo contemporâneo ao próprio dramaturgo.
A falecida envolve a história de Zulmira, que, com Tuninho, constitui um casal de classe média baixa. Ela tem uma doença mortal, acredita em cartomantes e sonha com um pomposo velório. Ele é um sujeito vagabundo, sem emprego ou qualquer projeto de vida, que vive às custas da mulher. Na peça de Rodrigues, Zulmira acaba se relacionando com o proprietário da loja portuária, no afã de garantir seu velório como pretende. Tuninho, ao descobrir a verdade, após a morte da esposa, se vinga, mandando-a enterrar num caixão da pior qualidade, sem qualquer cerimônia. O final da peça proporciona, talvez, uma das cenas mais trágicas de toda a dramaturgia rodrigueana: a solidão de Tuninho, em pleno estádio Maracanã lotado, quando o homem, lançando aos ares as notas do dinheiro ganho e poupado pela mulher, pretende se vingar da traição da esposa.
O diretor Julio Zaicoski e a atriz Mariana Vellinho resolveram propor uma livre releitura do texto, a partir do ponto de vista da mulher, aqui chamada de Zizinha, sendo seu marido Caco igualmente desocupado e vivendo às custas da mulher.
A releitura de uma obra clássica é sempre um desafio e uma armadilha. Walter Benjamin abordou este processo através do conceito da 'aura', isto é, da influência que as obras de arte provocam umas sobre as outras. Se o desafio é ultrapassado, teremos uma obra-prima. Mas em geral, a dificuldade leva à armadilha, em que soçobra a maioria das tentativas.
Fôlego, em parte, soçobra na armadilha. A ideia de reproduzir a narrativa sob o ponto de vista da mulher, concretizando-a num monólogo, não é ruim. Mais que isso, se a peça original mantém um ponto de vista equidistante e neutro em relação aos acontecimentos, apresentando-os numa mescla de tempo presente e flashbacks, a experiência da dupla Julio e Mariana constrói sua narrativa num presente que ultrapassa o momento da morte do personagem e só então entrega a revelação sobre o passado do personagem feminino, o que também não é uma escolha equivocada.
O que falta a Fôlego é uma unidade dramática, o ponto de vista do personagem: Zizinha surge muito prosaica, assim como prosaico é seu marido Caco. De repente, contudo, ao longo do texto, surgem algumas reflexões filosóficas evidentemente incompatíveis com o personagem feminino, assim como, por vezes, seu atravessamento por uma consciência de gênero: quem, acreditando em cartomante, poderia refletir criticamente sobre sua condição feminina? É a partir da falta de maior densidade dramática que surgem os primeiros problemas da encenação de Fôlego.
A interpretação de Mariana Vellinho, assim, nasce prematuramente prejudicada. Um personagem dramático precisa ter unidade de personalidade, que o texto lhe projeta virtualmente. Se isso não ocorre, o intérprete precisa construir, por conta própria, esta unidade. Ora, quando os dramaturgistas são, ao mesmo tempo, diretor e intérprete, isso se torna quase impossível, porque eles se tornam coniventes, para o bem e para o mal, com sua criação.
O resultado final de Fôlego se apresenta com uma boa estrutura, enquanto dramaturgia, mas um desenvolvimento dramático falho. Sempre acho que estes trabalhos que misturam autores e intérpretes correm grandes e desnecessários riscos de sucumbirem: qualquer artista sabe que o mais difícil, na criação artística, é sempre o corte do que já se escreveu/criou. Porque é cortar na pele, e isso dói. Mas, sem estes cortes, jamais chegam à obra plenamente realizada. Ora, a relação emocional entre os criadores acaba impedindo, praticamente, este distanciamento que determina o corte. O resultado é uma realização incompleta, em que a emoção supera a razão e a obra fica capenga. Fôlego precisa ser revista enquanto texto - dramaturgia - sem o que não poderá ser corrigido enquanto espetáculo, para prejuízo da intérprete.
 

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