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Teatro
Antônio Hohlfeldt

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Publicada em 30 de Novembro de 2023 às 18:14

Ficções muito reais num palco transformador

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Antonio Hohlfeldt
É muito difícil escrever sobre Ficções, espetáculo que, durante duas semanas, ocupou o Theatro São Pedro e teve plateias lotadas, numa performance emocionante, sensibilíssima e radical de Vera Holtz. Teoricamente, o espetáculo nasceu do livro do historiador israelense Yuval Noah Harari. Mas, por um seu depoimento, a gente fica sabendo que o próprio dramaturgista e diretor do espetáculo, Rodrigo Portella, jamais lera o livro de Harari antes de ser convidado por Vera a transformá-lo em um espetáculo cênico. Portella aceitou a tarefa, aliás, depois de muitos outros terem se negado a isso. Em troca, apresentou à atriz o violoncelista italiano Frederico Puppi. Na verdade, o espetáculo não pode ser pensado sem ambos. O que se pode ter certeza é que, a partir de uma vontade original e surpreendente de transpor o livro reflexivo e filosófico de Harari, ideia abraçada efusivamente pela atriz, houve uma série de iniciativas que chegaram ao que assistimos ao longo de cerca de hora e meia de espetáculo: um trabalho que não tem referências, não tem antecedentes e talvez não deixe descendentes. Mas que é absoluto, único, verdadeira obra de arte, porque quebra padrões e propõe, enquanto linguagem dramática, novas e até então aparentemente impossíveis propostas de realização. Isso define uma obra de arte, de onde se deve reconhecer que Ficções é, indubitavelmente uma obra de arte que, justamente por sua inovação, é difícil de avaliar e sobre a qual é difícil escrever, num primeiro momento. Ela nos toma, nos invade, nos ocupa, e a gente, quando sai do teatro, e no dia seguinte, continua pensando, continua lembrando, continua sob seu efeito.
É muito difícil escrever sobre Ficções, espetáculo que, durante duas semanas, ocupou o Theatro São Pedro e teve plateias lotadas, numa performance emocionante, sensibilíssima e radical de Vera Holtz. Teoricamente, o espetáculo nasceu do livro do historiador israelense Yuval Noah Harari. Mas, por um seu depoimento, a gente fica sabendo que o próprio dramaturgista e diretor do espetáculo, Rodrigo Portella, jamais lera o livro de Harari antes de ser convidado por Vera a transformá-lo em um espetáculo cênico. Portella aceitou a tarefa, aliás, depois de muitos outros terem se negado a isso. Em troca, apresentou à atriz o violoncelista italiano Frederico Puppi. Na verdade, o espetáculo não pode ser pensado sem ambos. O que se pode ter certeza é que, a partir de uma vontade original e surpreendente de transpor o livro reflexivo e filosófico de Harari, ideia abraçada efusivamente pela atriz, houve uma série de iniciativas que chegaram ao que assistimos ao longo de cerca de hora e meia de espetáculo: um trabalho que não tem referências, não tem antecedentes e talvez não deixe descendentes. Mas que é absoluto, único, verdadeira obra de arte, porque quebra padrões e propõe, enquanto linguagem dramática, novas e até então aparentemente impossíveis propostas de realização. Isso define uma obra de arte, de onde se deve reconhecer que Ficções é, indubitavelmente uma obra de arte que, justamente por sua inovação, é difícil de avaliar e sobre a qual é difícil escrever, num primeiro momento. Ela nos toma, nos invade, nos ocupa, e a gente, quando sai do teatro, e no dia seguinte, continua pensando, continua lembrando, continua sob seu efeito.
Não se tratava de transformar o livro em uma peça de teatro, mas idealizar um espetáculo cênico a partir das sugestões do livro. Mais que isso, com espécies do que se pode dizer "anotações de margem" de um leitor atento, inteligente e criativo, descobrindo gradualmente o texto, tratava-se de desenvolver ideias paralelas a partir dele.
Não há, pois, um modelo de dramaturgia que inscreva o espetáculo em um gênero ou nos permita categorizá-lo em uma tendência. Ficções é um espetáculo de liberdade criativa e, por isso, libertário. Daí que, desde o início, a intérprete e narradora-personagem deixe claro tratar-se de um trabalho cooperativo - não só dos artistas entre si, mas dos artistas com o público. Quem for com ideias preconcebidas quanto ao livro ou ao formato do espetáculo, não vai gostar, porque não conseguirá aderir a ele. Não vai haver comunicabilidade.
O espaço cênico é abstrato, com uma moldura de aço que aparece em certo momento, enquadrando as figuras em cena e, em especial, aquela massa enorme que parece ser uma pedra (a humanidade começou trabalhando a pedra, dando-lhe utilidade humana, do que partiu todo o conceito de cultura e de civilização). Mas aquela enorme massa, que se encontra no chão do palco e depois é içada a meia altura, para retornar ao chão, mais adiante, pode ser também uma simbólica representação do cérebro humano: afinal, a nossa diferença em relação aos animais foi justamente nossa competência adaptativa, primeiro e, depois, a criativa e transformadora.
Guiado pela extremamente competente dramaturgia de Portella, o trabalho é mais que isso: reflete sobre as teorias evolucionistas, denuncia o machismo, brinca com as invenções religiosas, desafia o espectador a juntar-se ao intérprete e participar de exercícios e brincadeiras, o que quebra a quarta parede sem que a atriz tenha de sair do palco; enfim, suspende a vida lá de fora e nos mergulha numa história literalmente milenar para nos trazer aquilo que é, cada vez mais, fundamental, necessário e urgente: mais do que refletir, sentir o que seja o ser humano. Sim, o humano, o que é o humano? Ficções não pretende trazer respostas, não é esta a função da arte. Ficções apresenta a questão, presentifica algumas reflexões e depois deixa, para cada um de nós, as respostas, se as alcançarmos.
Humor, filosofia, uma interpretação soberba e definitiva de Vera Holtz, mas também do músico Frederico Puppi, tudo isso nos mostra, na prática, a importância da arte para a humanidade. A importância do teatro, para cada um de nós. O que é ficção? O que é realidade? Este espetáculo nos faz refletir seriamente sobre nossa (fictícia) realidade, tanto quanto sobre nossa (realística) ficção.
 

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