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Teatro

- Publicada em 28 de Setembro de 2023 às 19:34

A Ilíada: o amor do ator ao gesto e à palavra

O poema épico Ilíada, atribuído a Homero, tem 12.109 versos. O espetáculo idealizado por Daniel Dantas e por ele interpretado, ao lado da atriz Letícia Sabatella, escolheu os cantos I e XX para serem 'recitados' neste estranho e ao mesmo tempo desafiador espetáculo que, infelizmente, teve uma única récita na cidade, mas que, feliz e surpreendentemente, diante da evidente dificuldade da proposta e da relativamente escassa divulgação, alcançou público significativo.
O poema épico Ilíada, atribuído a Homero, tem 12.109 versos. O espetáculo idealizado por Daniel Dantas e por ele interpretado, ao lado da atriz Letícia Sabatella, escolheu os cantos I e XX para serem 'recitados' neste estranho e ao mesmo tempo desafiador espetáculo que, infelizmente, teve uma única récita na cidade, mas que, feliz e surpreendentemente, diante da evidente dificuldade da proposta e da relativamente escassa divulgação, alcançou público significativo.
Valendo-se de uma contestada mas poética tradução de Manoel Odorico Mendes, Ilíada, de certo modo, nos devolve à tradição dos aedos de recitarem em praça pública. Sim, não temos a praça pública mas um espaço fechado do teatro, mas é ao ator (que substitui o aedo) que está atribuída a função de narrar e, ao mesmo tempo, emular simbolicamente a narrativa. É um espetáculo eminentemente centrado no intérprete e em sua capacidade de mimetismo, no que Dantas e Sabatella - de certo modo, ela mais que ele - emocionaram e mostraram uma competência inigualável.
O espetáculo tem figurinos recatados, em preto, de Cristina Cordeiro, o que ajuda a centrar a atenção no intérprete; a iluminação de Beto Bruel dramatiza a récita, criando espaços e tempos; a música original de Octavio Camargo, que também assina a direção do espetáculo, busca recriar o clima e o ambiente passado, ainda que jamais cometendo o erro de querer copiá-los. Mas a abertura da recitação de Daniel Dantas, em que os primeiros versos são expressos na língua grega, permite que se entenda o que sustentava a récita: a musicalidade e o ritmo que as sílabas longas e breves, características do grego, como aliás do latim, permitiam uma entonação ora dramática (sílabas curtas) ora solenes e grandiosas (sílabas longas) enquanto o aedo interpreta/presentifica a narrativa.
Aristóteles, na Poética, valoriza a epopeia mas, inequivocamente prefere a tragédia. Assistindo a este espetáculo, talvez discordemos da posição do Estagirita. É claro que a presentificação da ação dramática é mais eficiente, o que ocorre na tragédia. Mas a epopeia permite, melhor, exige uma adesão mais decidida do ouvinte no sentido de imaginar a ação, para o quê o movimento do ator e a entonação do que diz são elementos essenciais.
Neste sentido, quem sabe Aristóteles mudaria de ideia ao assistir ao espetáculo de Daniel Dantas e de Letícia Sabatella? Dantas ampara sobretudo na voz a sua interpretação; Sabatella se destaca especialmente pela gestualização. Isso significa que cada um, que deve recitar/apresentar um canto inteiro, em trabalhos solo, sem nenhuma intervenção de um sobre o outro, criam personalidades específicas para cada passagem. Isso tem uma lógica: o canto I, a cargo de Dantas, traz uma espécie de apresentação dos personagens e do contexto. Já o canto XX descreve as disputas entre Agamenôn e Aquiles e a decisão do jovem guerreiro de, apesar de tudo, retornar aos combates, o que significa a vitória certa dos gregos. Neste sentido, os deuses resolvem intervir diretamente na batalha. Se o canto I é essencialmente descritivo e, neste sentido, grandioso, o canto XX é fundamentalmente dramático, porque explicita os diferentes sentimentos de Aquiles e dos próprios deuses, bem como as reações e diferentes ações de alguns dos personagens da guerra. O ritmo do poema, assim, se dinamiza e amplia, o que explica a escolha de Sabatella em acompanhar a récita por tal expediente. Por outro lado, ela também apresenta uma melhor verbalização dos versos, ainda que, no fundo, e de fato, nem mesmo as explicações que os intérpretes entregam aos espectadores, no início do espetáculo, cheguem a ajudar a compreensão plena do que está a ocorrer. O enredo é complexo, dezenas de personagens nele aparecem e centenas são mencionados; a prática grega de indicar o nome sempre acompanhado de uma expressão que traduz a importância do mesmo (à falta de um sobrenome, por exemplo), não ajuda em nada. Na verdade, o espectador acertará se decidir-se pela simples fruição sonora do que está sendo recitado, tal como o faziam os gregos da época. A poesia épica era para ser ouvida, nada mais.
Ilíada é um destes grandes momentos que evidenciam o segredo e a essência do teatro: o ator e seu amor à palavra e ao gesto.