O romance de Stephen King Misery foi lançado em 1987 e recebeu reconhecimento traduzido em premiação. Na sombra de outras adaptações de romances do escritor, Misery também foi transposto ao cinema, em 1990, com roteiro de William Goldman. O mesmo Goldman escreveu o texto da peça de teatro, que estreou em 1992. No Brasil, a tradução deste texto dramático já teve outras duas montagens. O atual projeto de Eric Lenate é, pois, uma terceira montagem nacional, que concorreu a premiações variadas.
Misery tem duração relativamente incomum para os atuais espetáculos teatrais, quase duas horas e meia. Embora a fluidez dos diálogos, sua concepção dramática paga pesado tributo ao cinema, o que lhe tira certa identidade dramática, desde o uso de projeções audiovisuais (o acidente de automóvel, os dois incêndios, etc) a uma necessidade de múltiplos espaços, o que é fácil para o cinema, mas nem tanto para o teatro. Isso exigiu um palco giratório. Como a maioria dos teatros brasileiros não tem palco giratório, o cenógrafo, que é o mesmo Eric Lenate, viu-se obrigado a construir uma plataforma que é montada sobre o palco convencional e que permite a necessária flexibilidade espacial: o quarto onde o personagem do escritor está preso, a sala, a cozinha e o espaço externo à casa. O serviço dos contrarregras, por isso, é exigente: tem de ser rápido, porque a trilha sonora de L. P. Daniel, que colabora no clima de suspense, não pode ser estendida infinitamente. Uma das soluções oportunas encontradas pela direção foi tornar a contrarregra explícita, o que a torna tolerável ao público, porque ela acaba se integrando ao desenvolvimento da ação dramática.
No elenco, Mel Lisboa incorpora uma aparente doce e frágil jovem mulher que se diz "fã número 1" do escritor Paul Sheldon, criador de uma série de romances cuja heroína é a sofredora Misery, que, não obstante, mostra-se corajosa e enfrenta as adversidades. Aqui, a teoria é a da função artística da mimese (imitação), estabelecida ainda ao tempo de Aristóteles, pela qual a obra de arte imita a vida. Esta imitação serve como uma catarse, isto é, uma purgação ou compensação para o leitor que, sofredor como ela, ao identificar-se com a personagem, na medida em que ela é uma vencedora, sente-se igualmente redimido de sua infelicidade, recompensado por sua falência graças à vitória da heroína.
A tese é fraca mas funciona bem para o enredo: esta Annie sente-se traída pelo escritor quando este, num romance até ali inédito, mata a personagem Misery Chastain (pode-se traduzir aproximadamente como Casta Miséria; mas chastain também pode se referir à punidora, naquilo em que se transforma a até então pacata Annie). Como punição aos "erros" e "desvios" do escritor - ele ainda lhe permite ler um manuscrito inédito de uma autobiografia eivada de palavrões, o que a choca terrivelmente - ela o aprisiona. Do outro lado, um xerife começa a investigar o desaparecimento de Sheldon, após deixar o hotel em que estava hospedado, pouco antes de ser apanhado por uma tempestade. Este xerife, que se chama Dumpster (alguma referência indireta a "dump" que, em inglês, quer dizer "tirar as coisas para fora", "revelar"), acaba descobrindo a verdade. A partir daí, o enredo se sustenta no suspense; nesta última meia hora, a ação se aligeira até chegarmos ao final, uma terrível ironia de King para com o próprio sistema literário em que vive.
Mel Lisboa evidencia sutileza nas mudanças de humor da personagem; por outro lado, Marcello Airoldi, que incorpora o escritor, muda gradualmente sua função dramática à medida em que o enredo avança e, neste sentido, é mais do que apenas um antagonista. Mas é o personagem do xerife, pelo modo como foi incorporado por Alexandre Galindo, quem, de fato, torna a encenação mais interessante.
A produção é cuidadosa, destacando-se o projeto cênico do próprio diretor. Os figurinos de Carol Badra e Leopoldo Pacheco procuram ser fieis à região norte-americana em que ação ocorre. Mas o resultado final paga um pesadíssimo tributo ao roteiro cinematográfico de que advém: a maior parte das soluções dramáticas estão vinculadas a uma perspectiva do cinema, e não do teatro, inclusive quanto à multiplicidade de espaços. Sendo assim, temos um espetáculo interessante, mas pouco de dramaturgia, de fato. Claro, em tempos pós-modernos e de mistura de gêneros, isso não é pecado mortal, mas enfraquece o texto, enquanto proposta dramática.


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