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Teatro

- Publicada em 31 de Agosto de 2023 às 17:51

Momento mágico do teatro

Neste fim de semana, fazendo palavras cruzadas, passatempo que me agrada muito, enfrentei um comando "elemento essencial ao teatro", quatro letras. Não titubeei: "ator". Não imaginava que, ao visitar o teatro Glenio Peres, na Câmara de Vereadores, construído sobretudo como um pequeno auditório, depois transformado em um pequenino teatro de câmara, tudo por iniciativa e insistência da então vereadora Sofia Cavedon, para assistir a Teatro sem mapa, eu teria a melhor comprovação de como este comando estava acertado.
Neste fim de semana, fazendo palavras cruzadas, passatempo que me agrada muito, enfrentei um comando "elemento essencial ao teatro", quatro letras. Não titubeei: "ator". Não imaginava que, ao visitar o teatro Glenio Peres, na Câmara de Vereadores, construído sobretudo como um pequeno auditório, depois transformado em um pequenino teatro de câmara, tudo por iniciativa e insistência da então vereadora Sofia Cavedon, para assistir a Teatro sem mapa, eu teria a melhor comprovação de como este comando estava acertado.
Terra sem mapa estreou há alguns meses, já cumpriu diferentes, mas curtas temporadas. É um espetáculo criado para comemorar os 45 anos de palco dos atores Mirna Spritzer e Sérgio Lulkin. Creio que acompanhei toda a trajetória de cada um deles, por diferentes grupos, como o de Irene Brietzke, em que Mirna atuou, ou o de Maria Helena Lopes, em que Sérgio realizou seus melhores trabalhos. Agora, Sérgio Lulkin e Mirna Spritzer resolveram fazer um espetáculo juntos, justamente para comemorar o quase meio século de atividades de cada um. O roteiro é deles e a atuação é exclusivamente deles. Não há cenário, o palco está nu, e aqui entrou o conceito: o essencial do teatro é o ator. Isso é importante porque, desde o início do século XX, tem-se enfatizado muito o aspecto do espetáculo, esquecendo-se que o teatro é uma arte humanista exatamente porque tem o ser humano como centro: os temas são sociais (a sociedade é o resultado da convivência dos humanos entre si, conceito da pólis desenvolvido desde Aristóteles), e é a presença e a corporeidade do ator que constituem o espetáculo.
Sérgio Lulkin e Mirna Spritzer enfatizam a memória. Uma memória inventada, uma memória coletiva, uma memória que é o conjunto de memórias de muita gente. A memória de Luba e de Vrum. Tanto Sérgio quanto Mirna possuem ascendência judaica. Mas eles tiveram especial cuidado em enfatizar que não querem se referir apenas à condição de constantes exilados, párias, marginalizados, que os judeus enfrentaram, enquanto povo, em sua história. Eles pretendem, com Terra sem mapa, enfatizar a condição humana de todos aqueles que, não sendo aceitos em suas comunidades,, são delas expulsos.
O mais fantástico, em Terra sem mapa, é que não se vislumbra nenhum amargor ou decepção. Pelo contrário, o roteiro é altamente poético e, por isso, profundamente emotivo e emocionante. Por consequência, universal: pensei muito nos ucranianos que, neste exato momento, sofrem a invasão de sua pátria, vêm seus lares devastados e são obrigados a assumir a condição de párias ou de exilados.
Contemporaneamente, quem melhor estudou esta questão foi o jamaicano Stuart Hall, que desenvolveu sua vida acadêmica na Inglaterra e incluiu-se entre os fundadores do grupo de estudos culturais da Universidade de Birmingham. Há um pequenino texto seu que é uma preciosidade a respeito do tema, quando ele discute a identidade cultural na era pós-moderna.
Mirna Spritzer e Sérgio Lulkin falam a respeito desta marginalidade forçada, das migrações, da importância da língua, que leva todo o conceito de universo para cada falante; abordam, com intensa poeticidade, os desafios de quem, de repente, precisa deixar tudo e viajar, ir para um outro espaço, ocupar um outro mundo, adaptar-se a ou outro conjunto diverso de valores.
Mais que isso, contudo, Terra sem mapa - a memória - levou Mirna e Sérgio a mesclarem eventuais memórias pessoais com memórias culturais. E o fizeram com sensibilidade rara, emocionante, que nos leva a refletir radicalmente sobre a condição humana e o sem sentido das discriminações. Acima de tudo, eles evidenciam e comprovam a força do teatro: um ator no palco. Vale registrar a importância extraordinária da sensível trilha sonora de Gustavo Finkler, da cuidadosa e poética iluminação de Ricardo Vivian, os corretos e sugestivos figurinos de Rô Cortinhas.
Este é um espetáculo para a gente assistir como se rezando. Como se despindo para tatear as marcas no corpo, descobrindo sua identidade e sua condição de humanidade. É um espetáculo de teatro, acima de tudo, mas é uma decidida intervenção dos dois artistas na contraditória realidade que temos vivido, em que muita gente desqualifica outras por sua condição de gênero, de classe, de religião, enfim, de valores: o teatro recupera isso tudo e mostra o quanto somos semelhantes. Simplesmente humanos. Terra sem mapa é um momento mágico de teatro, a que todos devemos assistir.