Neste fim de semana, fazendo palavras cruzadas, passatempo que me agrada muito, enfrentei um comando "elemento essencial ao teatro", quatro letras. Não titubeei: "ator". Não imaginava que, ao visitar o teatro Glenio Peres, na Câmara de Vereadores, construído sobretudo como um pequeno auditório, depois transformado em um pequenino teatro de câmara, tudo por iniciativa e insistência da então vereadora Sofia Cavedon, para assistir a Teatro sem mapa, eu teria a melhor comprovação de como este comando estava acertado.
Terra sem mapa estreou há alguns meses, já cumpriu diferentes, mas curtas temporadas. É um espetáculo criado para comemorar os 45 anos de palco dos atores Mirna Spritzer e Sérgio Lulkin. Creio que acompanhei toda a trajetória de cada um deles, por diferentes grupos, como o de Irene Brietzke, em que Mirna atuou, ou o de Maria Helena Lopes, em que Sérgio realizou seus melhores trabalhos. Agora, Sérgio Lulkin e Mirna Spritzer resolveram fazer um espetáculo juntos, justamente para comemorar o quase meio século de atividades de cada um. O roteiro é deles e a atuação é exclusivamente deles. Não há cenário, o palco está nu, e aqui entrou o conceito: o essencial do teatro é o ator. Isso é importante porque, desde o início do século XX, tem-se enfatizado muito o aspecto do espetáculo, esquecendo-se que o teatro é uma arte humanista exatamente porque tem o ser humano como centro: os temas são sociais (a sociedade é o resultado da convivência dos humanos entre si, conceito da pólis desenvolvido desde Aristóteles), e é a presença e a corporeidade do ator que constituem o espetáculo.
Sérgio Lulkin e Mirna Spritzer enfatizam a memória. Uma memória inventada, uma memória coletiva, uma memória que é o conjunto de memórias de muita gente. A memória de Luba e de Vrum. Tanto Sérgio quanto Mirna possuem ascendência judaica. Mas eles tiveram especial cuidado em enfatizar que não querem se referir apenas à condição de constantes exilados, párias, marginalizados, que os judeus enfrentaram, enquanto povo, em sua história. Eles pretendem, com Terra sem mapa, enfatizar a condição humana de todos aqueles que, não sendo aceitos em suas comunidades,, são delas expulsos.
O mais fantástico, em Terra sem mapa, é que não se vislumbra nenhum amargor ou decepção. Pelo contrário, o roteiro é altamente poético e, por isso, profundamente emotivo e emocionante. Por consequência, universal: pensei muito nos ucranianos que, neste exato momento, sofrem a invasão de sua pátria, vêm seus lares devastados e são obrigados a assumir a condição de párias ou de exilados.
Contemporaneamente, quem melhor estudou esta questão foi o jamaicano Stuart Hall, que desenvolveu sua vida acadêmica na Inglaterra e incluiu-se entre os fundadores do grupo de estudos culturais da Universidade de Birmingham. Há um pequenino texto seu que é uma preciosidade a respeito do tema, quando ele discute a identidade cultural na era pós-moderna.
Mirna Spritzer e Sérgio Lulkin falam a respeito desta marginalidade forçada, das migrações, da importância da língua, que leva todo o conceito de universo para cada falante; abordam, com intensa poeticidade, os desafios de quem, de repente, precisa deixar tudo e viajar, ir para um outro espaço, ocupar um outro mundo, adaptar-se a ou outro conjunto diverso de valores.
Mais que isso, contudo, Terra sem mapa - a memória - levou Mirna e Sérgio a mesclarem eventuais memórias pessoais com memórias culturais. E o fizeram com sensibilidade rara, emocionante, que nos leva a refletir radicalmente sobre a condição humana e o sem sentido das discriminações. Acima de tudo, eles evidenciam e comprovam a força do teatro: um ator no palco. Vale registrar a importância extraordinária da sensível trilha sonora de Gustavo Finkler, da cuidadosa e poética iluminação de Ricardo Vivian, os corretos e sugestivos figurinos de Rô Cortinhas.
Este é um espetáculo para a gente assistir como se rezando. Como se despindo para tatear as marcas no corpo, descobrindo sua identidade e sua condição de humanidade. É um espetáculo de teatro, acima de tudo, mas é uma decidida intervenção dos dois artistas na contraditória realidade que temos vivido, em que muita gente desqualifica outras por sua condição de gênero, de classe, de religião, enfim, de valores: o teatro recupera isso tudo e mostra o quanto somos semelhantes. Simplesmente humanos. Terra sem mapa é um momento mágico de teatro, a que todos devemos assistir.


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