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Teatro

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- Publicada em 04 de Maio de 2023 às 18:13

Brod e Kafka:tarefa cumprida

O espetáculo Um beijo em Franz Kafka, do dramaturgo paulista Sérgio Roveri, sob a direção de Eduardo Figueiredo e interpretações centrais de Anderson Di Rizzi (Max Brod) e Maurício Machado (Franz Kafka), surpreendeu em vários sentidos. Enquanto dramaturgia - e isso é o principal - Roveri foge do modelo norte-americano deste tipo de texto, que segue à risca os episódios históricos e heroiciza os personagens. Pelo contrário, com algumas citações textuais e várias referências indiretas, Roveri não propõe um episódio histórico - a amizade dos dois escritores - mas, a partir desta amizade, e do que terá sido o último encontro entre ambos, desenvolve um espetáculo expressionista, que coloca em cena os fantasmas do escritor tcheco, de expressão alemã.
O espetáculo Um beijo em Franz Kafka, do dramaturgo paulista Sérgio Roveri, sob a direção de Eduardo Figueiredo e interpretações centrais de Anderson Di Rizzi (Max Brod) e Maurício Machado (Franz Kafka), surpreendeu em vários sentidos. Enquanto dramaturgia - e isso é o principal - Roveri foge do modelo norte-americano deste tipo de texto, que segue à risca os episódios históricos e heroiciza os personagens. Pelo contrário, com algumas citações textuais e várias referências indiretas, Roveri não propõe um episódio histórico - a amizade dos dois escritores - mas, a partir desta amizade, e do que terá sido o último encontro entre ambos, desenvolve um espetáculo expressionista, que coloca em cena os fantasmas do escritor tcheco, de expressão alemã.
Por isso, o estranho título da obra, que refere uma prostituta com quem o autor de A metamorfose cruzara, ao dirigir-se à casa do amigo, e com a qual pretendia relacionar-se, pois não conseguia manter qualquer outro tipo de contato com o sexo feminino. A figura da prostituta Brigitte, apenas mencionada, torna-se simbólica para a peça e traduz, com simplicidade, mas efetividade, a solidão e a marginalização social em que vivia o escritor.
O espetáculo idealizado pelo diretor Eduardo Figueiredo faz uma desconstrução da biografia do escritor e, sobretudo, das relações entre Max Brod e Kafka. O polêmico autor de Carta a meu pai havia encarregado seu primeiro e, muitas vezes, único leitor, em quem confiava emocionalmente desde o início da amizade, de destruir todos os seus escritos, cenicamente reunidos num baú, enquanto espalhadas, por toda a cena, em total desorganização, encontram-se páginas de manuscritos. Brod resiste, acaba prometendo mas, na verdade - e felizmente, para a literatura ocidental - não cumpre a promessa, salvando, assim, a obra de um dos mais referenciais escritores do século XX.
A trilha sonora de Guga Stroeter e Matias Capovilla é executada, ao vivo, por Ricardo Pesce, ora no acordeão, ora ao piano. Só esta ambiguidade projetada no espetáculo já é um achado que exige, evidentemente, encontrar o artista apto para tal função, duplo de músico e de ator. Mas Figueiredo criou outros fantasmas que atravessam a cena, corporificados sobretudo pelo bailarino Thiago Pach que, a cada passagem, quebra o clima dramático e praticamente trágico da situação - o escritor consciente que se encontra à beira da morte, recrimina-se por não ter alcançado a escritura ideal que pretendia mas, ao mesmo tempo, e inconscientemente, defende com unhas e dentes o que produziu, conforme uma das sequências da obra. Estes fantasmas quebram o clima de forma expressionista, provocando momentos cômicos, obrigando o espectador ao distanciamento da cena e o levando a refletir sobre a incompreensão que o autor, muitas vezes e no início de seu trabalho, enfrentou frente ao público, ainda que tenha recebido, desde cedo, algum destaque com premiações que valorizavam sua criação.
A cenografia é simplesmente brilhante, reverbera os espaços obscuros e caóticos projetados em O Castelo e logo predispõe o espectador ao que virá em seguida. Do mesmo modo é a iluminação, que cria diferentes tonalidades que se alternam e se põem em movimento, como visões ou estados de alma dos personagens. Infelizmente, nenhuma ficha de produção que consultei traz os nomes dos artistas que criaram estes dois trabalhos, o que é uma lástima, pois devem ser plenamente referenciados e reverenciados. Eles consolidam a proposta dramática de Roveri e concretizam o espetáculo idealizado por Figueiredo, para além do figurinista que igualmente fica anônimo, mas que deve também ser valorizado pela perfeita contextualização das vestimentas de todas as personagens, com destaque para os protagonistas, é claro, mas também pelas soluções encontradas para as visões simbolicamente presentes em cena, durante a performance, de pouco mais de uma hora de duração.
Anderson Di Rizzi, como Max Brod, é comedido e dedicado. Maurício Machado, vivendo Kafka, incorpora, com absoluta veracidade, a angústia e a contradição de Franz Kafka. Por tudo isso, eis um espetáculo de teatro com T maior, cada vez mais raro. E daí as outras surpresas: o teatro estar lotado, o público assistir à encenação religiosamente e, ao final, aplaudir cm entusiasmo, respeito e veemência. Pode-se dizer, com absoluta certeza, que a trupe cumpriu sua tarefa.