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Teatro

Teatro

- Publicada em 13 de Abril de 2023 às 17:52

Reencontro com Godot

Clássico do chamado teatro do absurdo, Esperando Godot, do irlandês Samuel Beckett, estreou na nova sala do complexo do Multipalco Theatro São Pedro, o Teatro Oficina Olga Reverbel.
Clássico do chamado teatro do absurdo, Esperando Godot, do irlandês Samuel Beckett, estreou na nova sala do complexo do Multipalco Theatro São Pedro, o Teatro Oficina Olga Reverbel.
Dividido em dois tempos, o texto criado por Beckett, logo no início dos anos 1950, após o término da II Grande Guerra, paga evidente tributo ao niilismo e à decepção humanitária que aquele episódio sangrento - especialmente com os campos de concentração nazistas - havia produzido na Europa e, por extensão, em todo o mundo. Beckett, por sua origem irlandesa, certamente tinha uma agravante: sua origem fortemente católica fora renegada e ele, desde sua adolescência, tornara-se ateu, embora mantivesse referenciais bíblicos em sua formação cultural, como é evidente nesta obra.
O leitor certamente conhece o leitmotiv da peça: dois homens, Estragon (Sandra Dani) e Vladimir (Janaína Pelizzon) se encontram numa encruzilhada de estrada deserta onde um certo Godot indicara-lhes que os iria encontrar. Muitos intérpretes da obra costumam salientar a proximidade do nome à expressão, em língua inglesa, "god" relativa a Deus. Este Godot, à semelhança de Deus (?), apesar da promessa de encontro (na perspectiva judaico-cristã, de redenção, por consequência), posterga sua aparição de forma infinita e frustrante. A frisar a reiteração da espera jamais concretizada, personagens diversos, como Pozzo (Arlete Cunha) e Lucky (Lisiane Medeiros) cruzam periodicamente o caminho dos dois parceiros: Pozzo é um sujeito atrabiliário, violento e opressor, enquanto Lucky (ironia suprema, já que seu nome de batismo pode ser traduzido como Feliz) é um oprimido que não ousa revidar ou escapar-se. Simbolicamente, representa-se, assim, a então recente experiência de opressão que levara a humanidade à guerra. A metáfora destes sujeitos, contudo, é cada vez mais evidente, com o passar do tempo: sistemas de opressão e exploração do mais forte pelo mais fraco, desde aqueles episódios ocorridos entre 1939 e 1945, tem-se multiplicado e ampliado até hoje, em níveis locais, regionais ou internacionais, como vemos em ocorrências das indústrias vinícolas do Rio Grande do Sul, os negros pobres norte-americanos ou a Ucrânia invadida e saqueada por Putin e seus soldados.
Um menino (Valquíria Cardoso) aparece de tempos em tempos como a renovar a promessa da vinda de Godot, ainda assim sempre adiada, como os messianismos e falsos profetas que têm surgido periodicamente em todo o mundo, marcados sobretudo pelos populismos de esquerda ou de direita. Para piorar tudo isso, Estragon e Vladimir, companheiros de estrada, pouco têm de comum entre si, a não ser suas desditas. Praticamente incomunicáveis, suas presenças não funcionam como bálsamo à solidão mas, antes, como provocação de um olhar invasivo, como seria expresso por outro pensador europeu contemporâneo, o francês existencialista Jean-Paul Sartre. Em resumo, a última fala e sua rubrica são taxativos: "Vamos?", pergunta um ao outro. O outro responde "Vamos", mas não se mexem, permanecendo estáticos na encruzilhada, metáfora da condição humana.
A realização de Luciano Alabarse, que vem se superando na quantidade e na qualidade de trabalhos que assina, é, mais uma vez, de porte, até porque, para um texto como este, não se permite meio termo. Como o diretor explicita no programa da montagem, ele "objetivou" a generalidade do cenário de Beckett e, com isso, historicizou a condição dos personagens. Não estamos mais no pós-guerra, mas na pós-modernidade do lixo atômico, da destruição do meio ambiente, da negação da condição humana.
Sandra Dani vive um Estragon de expressividade emocionante. Janaína Pelizzon como que dá alma a Vladimir. Arlete Cunha corporifica a opressão e Lisiane Medeiros, na figura do infeliz Lucky, evidencia uma expressão profundamente contundente, destacada pela maquiagem.
O cenário do próprio diretor e a trilha sonora, escolhida por ele a partir de trechos do compositor contemporâneo Karlheinz Stockhausen, dão concretude ao projeto que o animou e à concepção que o guiou no espetáculo. Os figurinos de Zé Adão Barbosa evidenciam corpos sobrecarregados de trapos (valores culturais) que pesam sem vestir, que atrapalham sem abrigar, sob iluminação de Maurício Moura e João Fraga.
Não é um espetáculo fácil, mas é inesquecível, impactante. Preciso ver de novo.