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Teatro

Teatro

- Publicada em 30 de Março de 2023 às 17:45

Estética e militância

A segunda etapa do 29º Porto Alegre em Cena, iniciado no ano passado, estreou com o espetáculo Eu de você, com Denise Fraga. O trabalho não era exatamente novo e eu já o havia assistido, inclusive, no Theatro São Pedro, há algum tempo. Mas ele foi inteiramente dinamizado, digamos assim: sem modificações, que eu lembre, no texto original e roteiro, de múltipla autoria da própria Denise Fraga, Cassia Conti, André Dib, Fernanda Maria e Rafael Gomes, a partir de depoimentos de uma infinidade de pessoas que não são anônimas, porque estão devidamente identificadas na ficha técnica do espetáculo, mas que devem ser tomadas como representações simbólicas coletivas da humanidade (brasileira, apenas, ou universal?), o trabalho mescla, como um caleidoscópio (uso imagem da própria Denise Fraga) relatos pretensamente autobiográficos (como a referência ao pai) com depoimentos variados cujo ritmo narrativo vai num crescendo, ao longo dos cerca de noventa minutos de duração da performance.
A segunda etapa do 29º Porto Alegre em Cena, iniciado no ano passado, estreou com o espetáculo Eu de você, com Denise Fraga. O trabalho não era exatamente novo e eu já o havia assistido, inclusive, no Theatro São Pedro, há algum tempo. Mas ele foi inteiramente dinamizado, digamos assim: sem modificações, que eu lembre, no texto original e roteiro, de múltipla autoria da própria Denise Fraga, Cassia Conti, André Dib, Fernanda Maria e Rafael Gomes, a partir de depoimentos de uma infinidade de pessoas que não são anônimas, porque estão devidamente identificadas na ficha técnica do espetáculo, mas que devem ser tomadas como representações simbólicas coletivas da humanidade (brasileira, apenas, ou universal?), o trabalho mescla, como um caleidoscópio (uso imagem da própria Denise Fraga) relatos pretensamente autobiográficos (como a referência ao pai) com depoimentos variados cujo ritmo narrativo vai num crescendo, ao longo dos cerca de noventa minutos de duração da performance.
Denise Fraga está sozinha em cena, mas, na verdade, ao incorporar esta cerca de duas dezenas de personagens, coloca toda a humanidade no palco, num trabalho cujo ritmo é permanente e, se não chega a ser exatamente alucinante, é porque assim não deve ser: ele é constante, ele é forte, mas ele tem o domínio da artista, enquanto narradora e performer.
Num momento em que a sociedade brasileira luta para reencontrar-se com sua identidade, fragmentada, negada e espezinhada por acontecimentos políticos recentes, não de todo superados, diga-se de passagem, ecoando o processo semelhante que ocorre nos Estados Unidos, é importante um trabalho como este, que funciona como um alerta e um manifesto. Com direção de Luiz Villaça e produção de José Maria, antigo e tradicional parceiro da atriz, iluminação de Wagner Antonio e banda ao vivo composta por Ana Rodrigues, Clara Bastos e Priscilla Brigante, Eu de você tem uma concepção muito clara: a atriz se identifica com as pessoas, a atriz é todas aquelas pessoas que, eventualmente não têm acesso á expressão, não possuem voz, e esta voz é dada a partir deste trabalho.
Todo o espetáculo é dinamizado pela musica ao vivo, pela projeção de imagens (que já havia no espetáculo anterior), até mesmo pelas gravações de algumas dessas personagens, num ecletismo que traduz, com fidelidade e uma dinâmica emocionante, a realidade da sociedade brasileira. É um espetáculo de militância, sim, mas é, antes de mais nada, um espetáculo que guarda fidelidade ao sentido do teatro, da dramaturgia, do estar em cena: Denise Fraga se multiplica, se torna uma figura múltipla e profundamente emocionante e emocionadora. Não há espectador que não se aproxime, não se identifique com a atriz-personagem - mas que, igualmente, não seja desafiado a refletir a respeito das situações abordadas. Denise Fraga não segue a concepção aristotélica da mimese e da catarse, ou seja, não pretende provocar identificações que funcionem como descarrego de pesos ou culpas, não. Ela provoca a conscientização; neste sentido, ela segue a lição de Bertolt Brecht do distanciamento crítico, e é bom lembrar que, não por acaso, um dos mais recentes trabalhos dela é Galileu Galilei, que também assistimos no Theatro São Pedro, foi exatamente um texto - um dos últimos - de Brecht.
O festival Porto Alegre em Cena concentrou, nesta sua segunda etapa, seus principais espetáculos no teatro da Pucrs, devidamente reformado e modernizado, há algum tempo. O emocionante é que, sendo um salão de atos universitário, ele é gigantesco, recebe uma plateia enorme: e toda ela estava lotada, o que deve ter emocionado à atriz. Afinal, qual o artista que não gostaria de ter um público daquelas dimensões?
Denise Fraga, neste sentido, atingiu seu objetivo: falou literalmente com centenas de pessoas num único momento. E se ela defendeu e refletiu sobre a situação da mulher na sociedade brasileira contemporânea, também não deixou de refletir a respeito do significado a da função social do teatro, justamente aquilo que estava praticando, numa celebração conjunta com o o público.
Abriu bem, pois, o 29º Porto Alegre em Cena, mostrando a retomada de sua tradicional vitalidade e, sobretudo, valorizando o fato de ter reencontrado o formato "ao vivo" de que tínhamos tantas saudades.