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Teatro

- Publicada em 22 de Setembro de 2022 às 18:32

Longa jornada noite adentro: emocionante e inesquecível

Antonio Hohlfeldt
Quando li que Longa jornada noite adentro, de Eugene O'Neill, cumpriria temporada em Porto Alegre, emocionei-me profundamente. É uma das obras da dramaturgia contemporânea que mais me fascinam e embora conheça suas várias e diferentes versões cinematográficas, jamais havia tido a oportunidade de assisti-la em um teatro.
Quando li que Longa jornada noite adentro, de Eugene O'Neill, cumpriria temporada em Porto Alegre, emocionei-me profundamente. É uma das obras da dramaturgia contemporânea que mais me fascinam e embora conheça suas várias e diferentes versões cinematográficas, jamais havia tido a oportunidade de assisti-la em um teatro.
A versão trazida pelo diretor Sérgio Módena, que também traduziu o texto, é uma enorme ousadia. Primeiro, porque os 4 atos originais foram relativamente adaptados a um espetáculo de menos de duas horas de duração. Segundo, porque várias outras encenações brasileiras, reunindo algumas das atrizes mais reconhecidas do país, também haviam sido concretizadas em décadas atrás. O que era importante, de todo o modo, é que há pelo menos 4 décadas não se tinha uma produção da peça máxima de O'Neill, ainda que muitas outras de suas obras tenham sido inclusive aqui exibidas, nem sempre com os melhores resultados. O' Neill não é fácil de ser levado à cena: embora sempre trabalhando o drama psicológico, O'Neill não pode ser pensado a partir de um espetáculo lacrimoso, e sua autobiográfica Longa jornada noite adentro é ainda mais desafiadora, porque pensada milimetricamente, em todos os seus aspectos. Embora autobiográfica, a obra deve ser pensada sob uma perspectiva autonômica, enquanto obra de arte, enquanto uma peça de dramaturgia, e é sob este sentido que deve ser avaliada. Aliás, é sob esta perspectiva que se tornou clássica.
Comecemos pelo título, ao mesmo tempo poético e simbólico. A peça se desenrola em cerca de vinte e quatro horas, ao longo de uma jornada, adentrando-se pela noite. Mais do que um indicativo temporal, contudo, esta "noite" é simbólica, porque traduz a tragédia em que se encontram imersos todos e cada um de seus personagens: Mary, personificada extraordinariamente por Ana Lucia Torre; Luciano Chirolli, que incorpora o marido, James; Gustavo Wabner, que vive o bêbado Jamie; Bruno Sigrist, que interpreta o jovem e negativista Edmund e, por fim, mas não por um acaso, Mariana Rosa, enquanto Cathleen, a criada.
Longa jornada noite adentro deve ser lida enquanto uma tragédia contemporânea: há uma tradição literária que afirma ser a tragédia possível sem a existência de Deus, que garante a esperança do resgate e do reencontro. Pois leia-se a obra de O'Neill: nenhum personagem mantém qualquer crença em Deus, ainda que, do ponto de vista estritamente particular e individual, todos sejam boas pessoas e se amem entre si. O diálogo entre os dois irmãos é exemplificador. Jamie quer alertar a Edmund sobre sua perniciosidade; não obstante, não é capaz de impedir-se de continuar prejudicando o irmão, como fizera ainda menino, contra o outro mano que, por sua causa, morreu de sarampo.
O ator frustrado James não deixa de amar a esposa nem aos filhos, mas justamente pelas experiências de sua vida pretérita, na relação com a família original, consegue tomar decisões que possam garantir a sobrevivência de seus entes mais próximos, o que resulta na dependência química da esposa. Pode-se falar a respeito do destino - neste caso, de um destino familiar - apenas quando inexiste qualquer vinculação entre o ser humano e uma força maior, de modo que o homem anda perdido em suas decisões.
A ambientação da peça, desde logo a abertura do ato, é deprimente e simbólica: ao lado de um lago (a água poderia ser a salvação), um nevoeiro permanente envolve toda a jornada: ninguém consegue enxergar claramente, todos perambulam como em pesadelo, sem qualquer saída. Por isso, a peça se encerra como se iniciou: não há tempo histórico para os personagens, não há saída. Mais do que a decisão dos deuses, conforme a tragédia grega, em que claramente O'Neill se inspira, assim como em outras peças suas, como Morte sob os olmos, por exemplo, já encenada aqui, é o próprio homem que determina seu destino de dor e de sofrimento, graças às suas decisões equivocadas e egoístas.
O cenário de André Cortez, enfim, circular - um círculo do qual ninguém foge - a iluminação dura de Aline Santini e os figurinos de Fábio Namatame concretizam este espetáculo profundamente emocionante e inesquecível.
 
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